Rosa Godoy (*)
Caminhando rapidamente, ela afastou-se da casa e da vida que ela representava. Afinal, havia vivido 20 anos antes de dar-se conta de que tudo podia ser diferente. E tudo por causa de uma gata, por incrível que pareça.
A dita cuja havia chegado no ano anterior, vinda só Deus sabe de onde. Simplesmente apareceu e foi ficando. De vez em quando sumia e voltava dias depois, sem anúncio ou aviso. Tinha lá seus ritos e ritmos. Logo cedo, miava pedindo comida e só parava quando satisfeita. Parece que escolhia o que queria comer: agachava-se na frente da geladeira e miava incessantemente até que a dona, incomodada, adivinhava sua vontade. Um dia era leite, no outro, comida de lata, no seguinte, ração. Barriga cheia, ia até a janela e se demorava espiando os carros lá embaixo. De repente, movida pelo gosto da liberdade, caía no mundo.
Quase sem perceber, a mulher foi ficando cada vez mais fascinada pelos gestos e hábitos do pequeno animal que, independente, ia de telhado em telhado, explorando o mundo, sorvendo cada pedacinho de chão através das patas. Silenciosa, altiva, transpirava auto-estima e confiança. Quem me dera poder sair por aí assim, sem preocupação, invejava. Na outra geração, quero nascer gata, mulher, nunca mais!
Sozinha na imensidão da casa, nem sequer podia se dar ao luxo de pensar em desagradar a família. Tudo a tempo e a hora, o marido costumava dizer, é assim que se consegue vencer na vida. Trabalhava feito condenada para dar conta das tarefas domésticas antes dele chegar. Quando chegava, todas as atenções tinham endereço certo: o chefe. Como a gata, tinha que adivinhar suas vontades.
Enquanto os filhos eram pequenos, o tempo passava sem sentir. Eram quatro, de idade bem próxima, davam um trabalhão danado. Depois que cresceram, soube o que era solidão de verdade. Entravam e saíam, ocupados, cada qual com suas coisas. E ela na pia, no tanque, no fogão. E ainda tinha que ser linda e cheirosa, à noite. Concordo com Vinícius de Morais, as feias que me perdoem, mas gosto mesmo é de beleza. Se você não se cuidar, troco por duas de 25, brincava. O regime quase a matava, mas fazia de tudo para manter a forma. Boca não tinha para nada. Cabeça só para concordar.
Devagarzinho, como quem não quer nada, o vazio foi crescendo dentro do peito. Para completar, a sensação de andorinha de trinta réis era cada vez mais freqüente. Não sabia o que apertava mais, se a casa – grande, cheia, trabalhosa – ou a vida -vazia, insossa, monótona, sem sentido. No fundo sabia que tinha tudo e não tinha nada.
Naquele domingo, enquanto todos dormiam, arrumou demoradamente a bolsa, incluindo uma muda de roupa, pente, escova e pasta de dente. Como sempre, deu comida para a gata e foi olhar os carros. Quando a pequenina saltou janela afora, encaminhou-se para a porta e saiu, sem olhar para trás. O porteiro não entendeu porque ao invés do costumeiro bom dia, acenou-lhe sorrindo e disse adeus.
(*) É colaboradora do JA.