Reginaldo Galli
Era madrugada. Absoluto silêncio no depósito do arsenal. Remanescente da guerra no Vietnã, uma velha bomba, apenas uma, repousava no armário dos artefatos bélicos. Ela não conseguira pregar os olhos. Nervosa, começou a rememorar narrativas de atrocidades e morticínios. Ouvira-as, durante anos a fio, dos marinheiros da Base, cada um mais gabola e falastrão, todos orgulhosos das reluzentes medalhas presas ao peito. Naquela manhã cumpriria, por fim, o destino para o qual fora criada: ia entrar em combate.
Que forte aperto no coração experimentou ao recordar-se de Jimmy, o único ser vivo que revelava ter sentimentos nobres, em meio ao contingente de tantos homens rudes! Após as instruções militares, enquanto os outros contavam proezas com mulheres e, referindo-se ao comandante, proferiam zombarias e palavrões, Jimmy vinha sentar-se ali, a seu lado, na mesma prateleira, invariavelmente mordiscando amendoins torradinhos. Trazia sempre consigo algum livro e o devorava, magnetizado, durante aquela hora e meia de intervalo. Às vezes, absorto, murmurava com ternura um nome: Rose. Chegava a escrevê-lo com o dedo no espesso pó que a recobria. Desenhava coraçõezinhos e acrescentava: I love Rose.
No correr de várias semanas, Jimmy dedicou-se à leitura da Bíblia Sagrada, repetindo sempre, até decorá-las, as passagens de seu agrado. Depois, resolveu estudar um método de controle mental e aprendeu a “entrar em alfa” para estimular as forças do inconsciente. Interessava-se, também, pelos gênios da literatura poética. Sabia várias línguas e declamava, enfaticamente, os versos mais belos. Qual sonhador embevecido, transportava-se, então, para magníficas esferas.
Rompeu o dia e rangeram os enormes portões do galpão, aquele refúgio que ela considerava seu verdadeiro lar. Espanaram-lhe a poeira e as teias de aranha, levaram-na com cuidado e a colocaram na carroceria de um barulhento veículo blindado.
–Ao aeroporto, rápido! Perdemos tempo por causa deste traste!
Espremida entre centenas de bombas modernas, lá se foi a veterana. Em meio ao vôo, teve a confirmação de que chegara mesmo a sua hora:
–Livre-se destas na periferia da cidade. Calcule com precisão: somente uma a cada quinhentos metros. Os mísseis inteligentes vão completar o serviço mais tarde, destruindo edifícios estratégicos e palácios do governo.
De repente, acionaram o dispositivo de abertura do compartimento em que haviam sido acomodadas. Que solavanco! Equilibrando-se como pôde, aguçou o olhar e… estremeceu: ia cair bem no centro da ampla e arborizada área de uma escola. Teve um “insight”: o rosto de Jimmy, sua voz, suas sábias palavras fizeram-se presentes, como por encanto: — NÃO MATARÁS, murmurou-lhe. E ela, desorientada, tonta…descendo…descendo…o chão girando e parecendo subir…Que suplício! Que agonia! Concentrando-se mais e mais, conseguiu “entrar em alfa”, contorceu-se toda e desviou do alvo! Neste breve instante, decidiu também que não explodiria, queria viver! Viver e deixar viver! Tocou o solo, deslizou por ele e ali se quedou, arfante, extenuada pelo descomunal esforço. Ousou pensar: obrigada, querido, você fez-me sentir como se fosse a tão amada Rose…a sua Rose…
Perto dali, vários jovens jogavam bola, alegres, alheios ao perigo. A cena lembrou-lhe Fernando Pessoa, um dos poetas prediletos de Jimmy:
No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado
– Duas, de lado a lado –
Jaz morto e arrefece.
Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.
Tão jovem! Que jovem era!
(Agora, que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
“O menino de sua mãe”.
Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira,
Ele é que já não serve.
De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço…Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.
Lá longe, em casa, há a prece:
“Que volte cedo, e bem!”
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto e apodrece
O menino de sua mãe.
Reclinando a ogiva, respirou aliviada, criou coragem e balbuciou meigamente RO…SE. Dois sons apenas, mas tão evocativos…tão doces… Era feliz e sabia. Agora sabia! Como é bom ter certeza do bem! E adormeceu em paz.