Um 1º de maio de muita emoção
Vera Botta (*)
A inauguração do espaço cultural Paratodos e do Centro de Saúde do Trabalhador Chico Neves poderiam ser acontecimentos significativos, esperados em um dia de comemorações. Para mim, foi muito além. Representou o (re) encontro com pedaços de minha vida e da história da cidade onde sempre vivi. Misturou-se o estar presente como autoridade convidada, em meio a discursos, ao entoar harmonioso dos corais e o sentir, através de emoções revividas, que nada foi apagado de minhas lembranças. Predominou o sentimento mágico de pertencer, não somente pela porta oficial do convite, aquele mundo.
Lágrimas escorriam sem parar. Nostalgia? Sentimento de quem está envelhecendo? Não apenas. Emoção pura de pensar em tempos outros que não foram, nem serão anulados, do nosso ser, da nossa identidade.
A casa pintada de amarelo da Rua Zero, o Centro de Saúde do Trabalhador nos recebeu, como Chico Neves fazia, de forma simples e tocante. Tive o privilégio de passar horas e horas saboreando as palavras ditas por Chico Neves, pequeno de estatura, mas grande em sonhos e realizações.
De gravador na mão, ou com muitos papéis, ficava tão encantada em ouví-lo que esquecia literalmente de apertar botões ou de tirar a caneta da bolsa. Com a mesma vibração, ele falava do que já havia passado em sua luta pela organização dos trabalhadores rurais, da repressão vivenciada e da esperança de mudança do futuro. Chico Neves foi em grande parte, responsável pela minha escolha de querer conhecer o mundo do trabalho e de luta dos bóias-frias.
Quando eu chegava ao sindicato, ele se abria num sorriso maroto: “Você ainda não cansou de ouvir estas minhas histórias?” para logo em seguida, abrir os labirintos de suas lembranças e falar-me com paixão, da sua história. Nossas conversas, “espiadas” pelo filho, Élio Neves, ainda de calças curtas, tinham o significado de uma conspiração “consentida”. Talvez ele visse em mim, jovem professora curiosa e inquieta, uma pessoa em que poderia confiar. E nossa conversa continuou, mesmo quando doente, tinha dificuldade em expressar-se por palavras, embora o fizesse pelo olhar, sempre vivo, atento a tudo. Pude assistir próxima a ele, a primeira posse de Élio na presidência do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Araraquara e ouvir do seu Chico, com a voz emocionada: “o menino vai indo bem, não é?” em uma confissão de orgulho e alegria pela continuidade da luta. A Chama Verde dos Canaviais, minha tese de livre docência, tem muito do que aprendi com seu Chico e continuo aprendendo com o Élio. O Centro de Saúde do Trabalhador tem o compromisso de ter a marca desta vida preciosa, de alguém que, de fato, pautou sua existência por sonhos e pela vontade de fazer.
Momentos depois, entrando no espaço cultural que seria inaugurado, em uma feliz parceria entre UNIARA e Prefeitura, minhas lembranças me levaram ao Cine Paratodos, a um tempo de estudante, de cumplicidade que permanece gravado em mim. Ir ao cinema representava, para nós, no final dos anos 50, a possibilidade de marcar encontro com o prazer. Guardar lugar, esperar as luzes se apagarem para sentar juntos com os namorados ou paqueras, sentir o coração acelerado com os beijos furtivos e o olhar ansioso para ver se algum professor ou vizinho estaria por perto…. Nas idas ao banheiro – pauta combinada com antecedência – podíamos confidenciar entre as amigas… “ele já pegou na sua mão? Então você está namorando firme? Onde vamos sentar…na platéia ou no balcão?” Momento de troca de segredos, de vontades aprisionadas, de intimidade. Momento de falar das dores e sabores das paixões, bem ou mal correspondidas.
No footing, na troca de olhares brilhantes, a cumplicidade era em parte (re)estabelecida. E havia sempre a promessa da próxima sessão, combinada através de bilhetes trocados nas carteiras do IEBA. Às terças-feiras, na sessão das moças, pagava-se meio ingresso. O Cine Paratodos lotava. A conferência das carteirinhas de estudantes era um ritual curioso, especial. No olhar cravado do porteiro, no cumprimento do seu dever, carteirinhas eram conferidas, fotos e cara a cara e a confusão aumentava quando apareciam estudantes com mais de 40 anos. Pode isso??????? Nas manobras para se entrar com carteirinhas dos amigos, nos pedidos para darmos uma espiadinha no “happy end”, nos divertíamos e nos frustrávamos com os nãos ditos do alto, por dever de ofício. Bela, cuidadosa e compenetrada era parte integrante deste mundo. Nas unhas perfeitas, com esmalte vermelho, no olhar sério, no cabelo avermelhado, a tudo assistia, muitas vezes nos passando pitos inesquecíveis, pela algazarra incontrolável.
Ontem, em todos os momentos da reinauguração do Paratodos, na referência ao Binho, na homenagem à Bela, nos cantos tão bem cantados, nas falas tão bem faladas, na apresentação de cenas do cinema e da cidade tão bem organizada por Mônica Zaher, parecia que vivíamos, no presente, os velhos tempos. Seriam velhos? E nossa velha senhora Araraquara, balançou negativamente a cabeça. Em questões de coração e alma, não tem velho, nem novo. No encontro com Dona Fanny, Dona Dirce Mazzi, Dona Edna Nogueira, a emoção redobrada. Sonhos revisitados, olhares, desejos, os sentimentos de ser parte da mesma tribo. Na vontade da Fundart/Secretaria Municipal da Cultura, na sensibilidade do Prof. Luiz Felipe de ser parceiro desta aventura que também revelava o caminho por ele trilhado, na ousadia do nosso jovem prefeito, foi firmado conosco um pacto. De amor pela cidade. No ato (re)vivido, na experiência acumulada, nas lágrimas e sorrisos, senti, do fundo de minha alma, que os papéis oficiais, hoje por mim desempenhados e as minhas memórias não estão dissociados. Não há distância, nem cronológica, nem afetiva, quando o querer e o ser falam alto.
A todos nós, trabalhadores, um abraço fraterno pelo dia primeiro. Que tenhamos razão e emoção, para seguir lutando. Até a próxima!
(*) É Coordenadora do Mestrado da Uniara e colaboradora do JA.