Um sonho só

João Baptista Galhardo (*)

Nos anos cinqüenta a propaganda eleitoral era feita principalmente por faixas de brim, algodão ou tricoline, com mais de um metro de largura por cinco ou seis de comprimento, amarradas em um poste de cada lado da rua. No período que antecedia a eleição, eu e o Neno, amigo e vizinho, colega do curso primário, marcávamos o território com o maior número delas. Na madrugada seguinte à apuração, com um bambu trazendo na ponta um instrumento cortante, recolhíamos uns cinqüenta metros de pano para “renovar” o nosso guarda roupa. Não havia como há hoje, a obrigação dos candidatos retirá-las. Assim, prestávamos um serviço ao Município, sem causar prejuízo para quem quer que fosse. Antes do amanhecer, cada um levava a sua porção para casa. Nenhuma tinta resistia água fervente com soda cáustica num pedaço de tambor, sobre um fogo improvisado de serragem de madeira dentro de uma lata de vinte litros. Depois, numa máquina de costura manual, a cargo da mãe, eram feitas camisas e calções. Estes para o futebol e cueca. A cor se escolhia: vermelha, preta, amarela, marrom, azul marinho. Para isso já existia a tinta Guarani para tingimento. O Neno era ajudante de cozinheiro da mãe, D. Maria, que trabalhou por muitos anos em casas de gente granfina, aprendendo os pratos mais requintados, além de ter feito um curso de culinária. Fazia geléia de jabuticaba e de marmelo, abacaxi em calda, doce de goiaba escorrida em peneira de taquara, cabrito à caçadora, empadas e coxinhas. Tinha freguesia certa. Cozinhava sob encomenda e também nas próprias residências por ocasião de aniversários, batizados, casamen-tos ou jantares especiais. Sempre com a ajuda do Neno, que já no primário tinha receitas escritas nos seus cadernos. Perdi contato com ele. Quarenta anos depois procurei saber por onde andaria. O Chico que ainda mora na redondeza informou que depois que os pais morreram ele virara mendigo. Não tinha serviço algum. Passava fome. Recebia alguma ajuda de vizinhos. Não bebia. Nem fumava. Solicitei ao Chico que me encami-nhasse o Neno, caso o encontrasse. Algum tempo depois, ele me procurou. Entrou na minha sala. Irreconhecível. Um maltrapilho. Um negro de cabelos e barba como paina. Pés inchados dentro de gastos chinelos. Não dava para saber qual mais grossa, a sola dos pés ou a da chinela. Contou-me sua vida. Vivia sozinho com seu cachorro Toby, que dormia com ele, apoiando a cabeça no seu peito. Esboçou um sorriso quando disse que o cão ficava bravo e latia quando ele roncava. Energia elétrica cortada por falta de pagamento. Dei-lhe uma quantia para comprar roupas e calçado. Brinquei, dizendo-lhe que precisava por os pés na soda como fazíamos com as faixas. Nesse momento ele criticou os políticos de hoje, que não fazem mais faixas aproveitáveis como antigamente. Dias depois ele voltou, com roupas limpas e conga nos pés. De barba feita deu para ver que seu rosto não tinha mais espaço para rachaduras. Parecia chão há muito tempo sem chuva. Daquele negrinho que subia num poste com a agilidade de um apanhador de coco, restava apenas os olhos e mesmo assim sem brilho. Perguntei-lhe sobre algum sonho. Para surpresa, falou que há muito sonhava com um prato fundo cheio de mocotó, com dobradinha e feijão branco. – Tenho até alucinação. Mas quero eu mesmo preparar. Deixar o feijão de molho na água, de um dia para o outro. Cozinhar o mocotó e a dobradinha separados. Depois misturar tudo com pimenta malagueta, limão, alho, uma pitada de cominho para dar cheiro, bacon, lingüiça e paio. Meu Deus…ainda vou fazer isso. Dizendo que era a título de empréstimo para não humilhá-lo, dei-lhe quantia com folga para uma boa cesta básica. Assumi o compromisso de lhe arrumar um trabalho, como de fato arrumei: vigia numa construção de andares. Decorridos uns sessenta dias, como não retornou nem mesmo para saber de emprego, fui até a sua casa. Desci do carro. Olhei para o centenário pé de manga espada no fundo do seu quintal. Era o mesmo sob o qual num fogão de lenha a sua mãe apurava os doces em tacho de cobre, com uma comprida colher de pau. A cerca, pela metade, em desalinho. Paredes sem reboco. Janelas quebradas. Bati palmas. Ninguém respondeu. Insisti. Apareceram duas vizinhas. Uma de cada lado: – se o senhor está procurando o Neno, ele morreu faz uns quarenta dias. Ao escurecer ouvimos o Toby uivar como um lobo faminto. Não era latido. Era mais um pedido de socorro. Fomos até lá e encontramos o Neno estendido na cama, com o cachorro “cavoucando” seu peito num desespero, querendo ressuscitá-lo, ao mesmo tempo em que lambia seu rosto. – Do que será que morreu? Perguntei. E elas observaram: – de fome é que não foi. Havia um prato fundo usado. E sobre o fogão, ainda com brasas, estava uma panela com alguma sobra de mocotó, com dobradinha, feijão branco, lingüiça, paio e bacon. Antes de morrer ele realizou o seu sonho. Ou morreu porque seu sonho foi realizado?

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