Cesar Tólmi (*)
Diante de tantos exageros pró e contra Sigmund Freud, quase que colocando-o numa espécie de Panteon dos Deuses, ou rebaixando-o à condição de impostor, o que fazer para entendermos o seu real valor e, consequentemente, o valor da Psicanálise? Não me refiro àquela Psicanálise que hoje conhecemos, mas àquela pretendida por Freud até os seus últimos momentos. A questão é, exatamente, admitirmos que a Psicanálise não se resume aos primeiros e mais famosos escritos de Freud, nem ao contexto do que, posteriormente, apresentou-nos Lacan. É imprescindível que se entenda que, a Psicanálise pretendida por Freud, é um devir, uma proposta ainda por ser desenvolvida, uma “construção a ser realizada sobre os alicerces feitos por Freud”. É necessário confrontar os adoradores de Freud para “baixá-lo do trono de Deus” e, ao mesmo tempo, “elevá-lo das mais baixas regiões” que seus detratores o têm colocado, para que, munidos da absoluta imparcialidade, possamos, finalmente, examinar o todo, parte por parte…
Faz cerca de 95 anos desde a morte de Sigmund Freud e é de uma desproporcional inocência ou mesmo negligência científica, pensar que os pressupostos psicanalíticos de então se encaixam perfeitamente nos dias de hoje, como também é de enorme ingenuidade ou negligência científica, considerar como sem sentido tais pressupostos. “No baú da história humana sempre há, coisas que não mais servem, por terem perdido o valor, e coisas de muitíssimo valor, que merecem, portanto, adequadamente serem reutilizadas”.
Em um importantíssimo texto, Freud disse: “A psicanálise faz uma suposição básica cuja discussão fica reservada ao pensamento filosófico (…)”.
No fragmento acima, Freud primeiro afirma que a psicanálise não faz uma “descoberta”, e sim, uma “suposição básica”, e segue ressaltando a importância da filosofia como “juíza da razão”, a única que tem a capacidade para “pôr na balança” as suposições básicas da psicanálise, para aferir o seu valor. Ele continua: “(…) Daquilo que chamamos de nossa psique (vida psíquica), conhecemos duas coisas: em primeiro lugar, o órgão físico e cenário dela, o cérebro (sistema nervoso), e por outro lado, nossos atos de consciência, que são dados imediatamente e não nos podem ser esclarecidos por nenhuma descrição. Tudo o que está entre os dois nos é desconhecido; não há uma relação direta entre os dois pontos terminais de nosso conhecimento.”.
Observe que ele admite desconhecimento sobre “tudo o que está entre o cérebro, enquanto estrutura física, e os atos de consciência”, apontando, assim, para um amplo futuro de pesquisas e consequentes descobertas, inclusive dizendo que, “nossa psique”, é apenas uma expressão dada a um todo ainda desconhecido. Leitor (a) o referido futuro chegou e está dando passos largos em direção a tal coisa! É lastimável que os psicanalistas se mantenham de fora…
Agora, iremos analisar essa questão sobre a qual, humildemente e convém ressaltarmos que humildade é coisa raríssima entre psicanalistas Freud colocou como “suposição básica”, e ficaremos espantados frente à grandiosidade dessa “suposição básica” ao compará-la com o que hoje a Neurociência atesta. Freud, diz: “(…) Chegamos ao conhecimento desse aparelho psíquico por meio do estudo do desenvolvimento individual do ser humano. Chamamos de “isso” a mais antiga dessas províncias ou instâncias psíquicas; seu conteúdo é tudo aquilo que é herdado, trazido com o nascimento, estabelecido constitucionalmente; sobretudo, portanto, os impulsos que provêm da organização física, impulsos que aqui encontram uma primeira expressão psíquica cujas formas nos são desconhecidas (…)”. Aqui, ele se refere ao “isso” (ou “ide”) como força fisiológica, genética, diretamente vinculada aos órgãos e ao todo da vida humana orgânica. À uma parcela do “isso”, denomino de “herança psico-genética”. Freud chamou o “isso” (em Alemão, “it”), posteriormente, de “libido”, tratando mais sobre a sua atuação na sexualidade. Pode-se dizer que é o mesmo que os antigos filósofos estóicos e epicuristas chamavam de “hormé”, de onde vem a palavra “hormônio”. Tal coisa (“isso” é o mesmo que “coisa”) em latim chama-se CONÄTUS. Freud disse que, desses impulsos, isto é, dos impulsos fisiológicos, o psiquismo se desenvolveu, e salienta o desconhecimento sobre as maneiras pelas quais tal desenvolvimento se deu originalmente. E continua, fazendo uma acertada observação sobre o caminho pelo qual esse desenvolvimento se deu: “Sob a ‘influência do mundo exterior real” que nos circunda, uma ‘parte do isso’ experimentou um desenvolvimento especial. O que era ‘originalmente’ uma ‘camada cortical’ dotada dos órgãos para a recepção de estímulos e dos dispositivos para a proteção contra estímulos se transformou numa ‘organização especial que desde então serve de mediadora entre o isso e o mundo exterior. A esse distrito de nossa vida psíquica demos o nome de eu. (…)”. Neste ponto a “natureza do eu” é explicitada, tendo a sua confirmação no que, até o momento, se conhece sobre a cognição humana. Não é sem razão que alguns neurocientistas consideram Sigmund Freud como o principal precursor da Neurociência.
A camada cortical é a “camada externa de um órgão ou estrutura”, e no que refere-se ao cérebro é a “camada externa do córtex cerebral”, que é responsável por funções cognitivas como a memória, a atenção e a linguagem. Em neuroembriologia se tem melhor entendimento sobre essa questão, tão bem exposta por Freud mesmo há quase 100 anos!
Freud segue em seu texto, tornando ainda mais clara a questão do “eu” como desenvolvimento de “parte” (do) “isso”: “Em consequência da relação pré-formada entre a percepção sensorial e a ação muscular, o eu dispõe dos movimentos voluntários. Ele tem a tarefa da autoconservação; cumpre-a para fora, tomando conhecimento dos estímulos, armazenando experiências sobre eles (na memória), evitando estímulos demasiado intensos (por meio de fuga), confrontando estímulos moderados (por meio de adaptação) e por fim aprendendo a modificar convenientemente o mundo exterior em seu favor (atividade); cumpre-a para dentro em relação ao isso obtendo o domínio sobre as exigências dos impulsos, decidindo se deve admitir a satisfação dessas exigências, adiando tal satisfação para momentos e circunstâncias favoráveis no mundo exterior ou reprimindo totalmente suas excitações (…)”.
Os fragmentos freudianos expostos aqui, observados por mim a partir da neurociência, tendo como fio condutor o criterioso pensamento da filosofia, foram extraídos de “Compêndio da psicanálise”, o que seria uma obra que apresentaria, com riqueza científica, a psicanálise, explicando-a parte por parte, como nunca antes e nunca depois _até agora, quando, representando o IBEI Group – Instituto Brasileiro de Educação Integrativa, começo a dar o Curso de Formação em Psicanálise.
Ernest Jones, biógrafo oficial de Freud, assegura que a redação do Compêndio da psicanálise foi iniciada durante o período de espera em Viena, entre ABRIL e MAIO de 1938. A empreitada que seria o coroamento da psicanálise foi abandonada, ainda incompleta, depois de 63 páginas, em setembro, na Inglaterra, por causa da saúde então muito precária, de seu autor.
Sigmund Freud faleceu em 23 de SETEMBRO de 1939, isto é, por volta de um ano depois de iniciar a referida obra, estando com 83 anos de idade. É de causar espanto que, no final de sua vida e com saúde muito precária, uma pessoa ainda se impôs a realização de uma obra que se destinava a ser monumental! Freud foi tal homem…, para muito além de suas imperfeições, demonstrando, até o final de sua existência, o seu profundo compromisso com a humanidade, incluindo-se em tal compromisso a posteridade. “Compêndio de psicanálise” é uma obra póstuma que, mesmo como um rascunho do que viria a ser, praticamente superou sobremaneira tudo o que antes havia sido escrito e tudo o que veio a ser escrito sobre a psicanálise _até agora, com este novo compromisso, que assumo, de dar, de certo modo, continuidade ao “Compêndio de psicanálise” de Sigmund Freud.
(*) É Psicanalista, filósofo, jornalista, neurocientista clínico, pós-graduando em Psicologia Jurídica e Avaliação Psicológica, em Análise do Comportamento e em Estudo da Linguística; escritor, idealizador da Neuropsiquiatria Analítica, integrada aos campos clínico, forense, jurídico e social; diretor-fundador do IBEI Group – Instituto Brasileiro de Educação Integrativa.
Site: www.ibeigroup.com