A existência é uma roda viva que gira no sentido horário acionada por três catracas acorrentadas entre si.
A primeira catraca é a necessidade. A alavanca de qualquer progresso. A segunda é o esforço e a terceira é a utilidade. Desde que nascemos temos necessidade pelo menos de vestir, comer, habitar, saúde, estudo, lazer, locomoção.
A necessidade obriga a pessoa ou alguém por ela a trabalhar física e ou psiquicamente, para conseguir meios para obter bens ou utilidades para satisfazer as suas necessidades.
E assim segue a vida. Uma corrida de obstáculos. Não é desventura nascer em berço singelo. Essa circunstância faz o homem ainda infante procurar honestamente a satisfação de suas necessidades.
Na infância eu dividia meu tempo com pequenos afazeres no velho Fórum, vendo, ouvindo e aprendendo com advogados, promotores, juízes, escrivães, escreventes, os consumidores do serviço forense, e com o estudo de meio dia no Antonio Jota.
A convivência no Bairro do Carmo e os bons exemplos de pai e mãe completavam meu aprendizado de vida. Com meus amigos de infância, da mesma classe social, ou seja, "dos duros", sabíamos contornar algumas situações para, pelo menos em parte, satisfazer nossos desejos.
Se alguém quisesse tomar um sorvete, ia ao sábado ou domingo à sorveteria Colombo com pequeno isopor com alça para vender os picolés em campos de futebol. Chupavam-se alguns e ainda levantavam uns trocados.
Comer um doce era só auxiliar os confeiteiros da Padaria do Carmo. Enchia as bombas com aquele creme amarelo e ajudava colocar cocadas no forno. Comiam-se alguns e se ganhava alguma gorjeta. Refrigerante? Bastava lavar garrafas na Fábrica Baianinha, que ficava bem em frente da Igreja.
Tomavam-se algumas e ainda levavam outras de brinde para casa. Ganhar presente no fim de ano, era só fazer a primeira comunhão na Paróquia do bairro.
Além de ter garantido bolo com chocolate oferecido por paroquianos, ganhava, ainda, um presente no Natal. Fiz três vezes a "primeira" comunhão. Embora não seja proibido frequentar o catecismo e comungar mais de uma vez, confessei meu comportamento ao padre Bernardo, no confessionário. Dirigindo-se a mim disse o Pároco: "vou contar para as professoras (trocadas todos os anos) que é a terceira vez que você faz a "primeira" comunhão." Não sei se brincando ou não, ele pegou pesado. Respondi "o senhor não vai falar nada porque não pode ser revelado o que foi ouvido em confissão". Esnuquei o alemão.
Palco para reunião de amigos era o Largo do Carmo, ainda de chão batido, onde sentimos um dia a terra tremer depois de um estrondo enorme. Na esquina mais próxima da praça havia um Posto de Gasolina. Um pequeno espaço separando o escritório das bombas de abastecer e embaixo, no subsolo, o enorme tanque de combustível que explodiu levando para os ares não só o estabelecimento como também o seu proprietário, ficando tudo em pedaços. Parecia um terremoto.
Mas um grande acontecimento para a garotada, já repetido por três anos consecutivos, se dava no sábado da aleluia. Alguém, no anonimato, costurava um par de meias nas barras de uma calça. Na cintura desta, uma camisa de mangas compridas e no pescoço uma cabeça de pano. Esse boneco, que representava Judas, era recheado com balas e chocolates. Uns sessenta quilos mais ou menos. Ao meio dia, os meninos "armados" com pedaço de pau, ficavam aguardando a descida daquele boneco de pano cheio de doces que seria aberto com "suaves" pancadas. Em seguida enchíamos os bolsos e a camisa com aquelas guloseimas. No quarto ano chegamos bem antes. Aguardamos meia hora, uma hora, duas horas. Todos com os olhos vermelhos de olhar contra o sol para o alto da igreja, de onde ele desceria amarrado numa corda. E nada.
De repente apareceu o sacristão que deu a péssima notícia. "Não haverá mais Judas cheio de doces. O homem que pagava e tinha o prazer de ver a felicidade de vocês era o vendedor de gasolina. Ele morreu na explosão". Cada um foi embora socando o chão com o porrete. Chegando em casa minha mãe perguntou: – cadê as balas? Eu disse: "O Judas não apareceu. Quem pagava era o dono do Posto que explodiu.
– Não acredito que Deus tenha feito essa sacanagem com a gente matando aquele homem. Só pode ter sido obra de algum secretário Dele, mal humorado e rancoroso, com inveja da nossa alegria no sábado da aleluia".
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