Beto Caloni (*)
Faz cem anos que os araraquarenses começaram a chamar as suas ruas com números, além dos nomes. Foi em 1914 que a edilidade resolveu copiar essa ideia norte-americana, uma reforma condizente com as transformações urbanas que vinham ocorrendo há seis anos: calçamento,iluminação, arborização, construção de prédios imponentes…
A primeira rua da cidade é a dois (9 de Julho) pois ali passava a picada aberta pelos ituanos em 1731 ligando a borda do Planalto Ocidental Paulista ao Brasil Central. Vinha serpenteando pelos Campos de Aracoara, descendo em direção a Itirapina, passava na baixada onde nasceu São Carlos, chegava aqui pela Arauto, saltava uma pinguela sobre o córrego Formoso, onde hoje é o balão da 7 de Setembro e seguia no sentido da atual rua Dois até algum local perto de Bueno de Andrada, onde se dividia: em frente, para o sertão de Rio Preto em direção ao Mato Grosso, e à direita para e o sudoeste mineiro depois de passar pelo pontal do Rio Pardo, rumo a Goiás. A quadra de 400 braças foi demarcada em 1816 num campo de Aracoara para ser o povoado da Freguezia de São Bento de Araraquara, no canto norte da Sesmaria do Ouro, doada pelo padre Duarte Novaes. Esse "picadão" é uma das razões para a cidade estar neste local, assim como o córrego no pé da colina, hoje canalizado sob a atual Via Expressa.
A rua Cinco (Voluntários da Pátria) também é uma das primeiras ruas locais, surgindo logo após a demarcação da quadra da Matriz, a primeira. Nasceu ligando a parte de cima da colina, logo atrás da igreja. A rua Quatro foi surgindo naturalmente e em 1832 recebe a canalização de manilha de barro que trazia água da nascente do córrego (hoje, na Via expressa próximo a Rotunda da ferrovia). Na esquina da atual avenida Duque de Caxias foi construída uma caixa de alvenaria onde a população ia pegar água para consumo doméstico. A água servida descia pela rua Quatro e cortava o adro da igreja rumo a atual rua Maria Janazzi Biagioni (Três e ½). É esse rego artificial, extinto em 1878, que explica por que essa via nasce na praça interrompendo a rua Três. A partir da rua Seis (Carlos Gomes), já no topo da colina, as ruas foram surgindo com a expansão da cidade.
As primeiras ruas, em torno da quadra inicial, começaram a ser denominadas: rua Direita, rua de Baixo, rua do Campo, rua das Flores, da Glória, Manoel Silveira e outras imprecisas. A rua Um (Gonçalves Dias) nasceu para preencher o espaço entre o córrego e a Dois. A rua Zero (Carvalho Filho) é posterior, nasceu também para preencher o espaço entre o córrego e a rua Um. A rua Três (São Bento), curiosamente só foi aberta em 1870, ou seja, meio século depois de suas vizinhas. Ocorre que, na altura da atual Portugal, ficava a casa de Ignácio Batista, impedindo a abertura da via. A pedido da Igreja a Câmara Municipal, em 8 de maio daquele ano, adquiriu o terreno e prolongou a rua até o largo da Santa Cruz, então uma humilde capela de barro e madeira. Por volta de 1888, a rua três foi prolongada para além da Santa Cruz, atingindo a atual avenida Barroso.
Somente em 1871, ganharam novos nomes: Ipiranga (Gonçalves Dias), Santa Cruz (9 de Julho), Comércio (São Bento), Formosa (Padre Duarte) e outras. E também as avenida da Boa Morte (atual D. Pedro II), Santo Antonio (Brasil), Luiz Pinto (São Paulo), 7 de Setembro (Portugal), das Flores (Duque de Caxias), Dr. Cândido (Espanha), São Felipe (Feijó) e Padre Inocêncio (José Bonifácio).
Copiando Yankees
Desde 1908 a cidade vinha sofrendo uma radical transformação urbana com o calçamento das vias, instalação da energia elétrica, arborização, construção de prédios imponentes como o Theatro Municipal (já demolido), o Colégio (atual Casa da Cultura), Gota de Leite, Hotel Municipal, escola de Pharmácia etc… Em 1913, os vereadores, no clima das mudanças, resolveram também renomear as vias urbanas,promovendo uma reforma radical.
Além dos protestos de comerciantes e proprietários, o assunto gerou outras polêmicas: primeiro a questão levantada com a sugestão de se numerar, em vez de nomear, as vias públicas. Um artigo intitulado "Número ou Nomes?", publicado no jornal O Popular de 1/6/1913, de autoria de um certo "Conservador Progressista", defendia a adoção dos números. Entre outros argumentos afirmava que "a ideia números era dos americanos". Após calorosos debates ficou resolvido que as ruas, no sentido norte-sul, teriam os números crescentes, de maneira normal. Já as avenidas, no sentido leste-oeste obedeceriam critério diferente, idêntico ao adotado na época por Rio Claro: a atual Brasil, seria a avenida Um porque era defronte a escadaria da estação, então a porta da cidade. Depois seriam numeradas as avenidas à direita, com números pares, e à esquerda, com impares. Assim, a D. Pedro (avenida Três), XV de Novembro (Cinco), a Sete de Setembro (Sete) e, a São Paulo (Dois), Portugal (Quatro), Duque (Seis) etc…
Os edís imaginavam, na época, que a cidade cresceria uniformemente, para todos os lados. Já havia a Vila Xavier e o pontilhão para acessá-la, mas não havia qualquer preparo urbano naquela região. Por isso, não foi considerada a numeração também para lá: a maior parte daquela área ainda estava nas mãos da família Xavier de Mendonça, e só seria loteada na década seguinte. Curiosamente os números das ruas foram adotados pela população, já o das avenidas, não. Mas atualmente, na região a partir do parque infantil da avenida São Bento, as avenidas recuperam sua numeração: Augusto da Silva César (32), Prof. Borges Correa (34), Padre Colturato (36). No bairro de Santa Angelina os números são mais conhecidos que os nomes das avenidas.
Além de concordar com a numeração das vias, em 1914 a edilidade manteve a tradição dos nomes e propôs a renomeação. Primeiro pensaram em dar, às avenidas, nomes de figuras ligadas à história do Brasil, e às ruas, nomes de famílias tradicionais locais. Mas esse critério esbarrou na vaidade das que ficariam de fora. Esse era, aliás, um outro argumento em favor da numeração: "os números não sugerem lembranças das parcialidades políticas, às vezes prenhe de paixões e ódios mal contidos(…). Os nomes lembram individualidades, estas chocam interesses opostos, na política ou na sociedade", afirmava o anônimo articulista. Após novos debates, os vereadores chegaram a um consenso e os nomes escolhidos são os que permanecem até hoje, com algumas mudanças ocorridas ao longo do século.
A atual rua "zero", inicialmente se chamava Antônio Prado. Ganhou seu novo nome logo após a morte do coronel Antônio Joaquim de Carvalho Filho, ocorrida em 30/5/25. A principal artéria comercial da cidade, a rua do Comércio, passou a se chamar 9 de Julho, em 1934, em homenagem aos paulistas que lutaram na revolução dois anos antes. Nessa época, e pelo mesmo motivo a avenida Guaianases virou Djalma Dutra. Durante a 2ª Guerra Mundial a avenida Itália virou Duque de Caxias, por deliberação exagerada dos alunos da Escola de Pharmácia que, num ato piegas de patriotismo, quiseram evidenciar os italianos na condição de inimigo dos aliados e arrancaram as placas nas esquinas contendo o nome "Avenida Itália". Depois a Câmara Municipal procurou consertar o ato de ofensa à numerosa colônia italiana na cidade e substituiu por Itália, o nome da rua Cruzeiro do Sul e, para evitar mais polêmica, substituiu o nome da rua Aurora por Expedicionários do Brasil.
Para exemplificar, "O Imparcial" fica na avenida onze, quase esquina com a rua seis.
(*) É Bacharel em Comunicação Social, jornalista profissional, compositor e estudioso da história regional.