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Pois não, Ilustre Senhora!

Rosa Godoy (*)

A violência simbólica é um dos tipos de violência mais comuns, apesar de bastante ignorado ou nem mesmo identificado. Ocorre no cotidiano e, em geral, é muito praticado inclusive por pessoas que mantêm relações mais intimistas. Tratam-se de formas diferenciadas de desqualificação de um pelo outro, tidas muitas vezes como meras brincadeiras sem maiores conseqüências. Não é incomum, quando as situações são sinalizadas, serem classificadas como implicância, exagero, falta de compreensão e outras formas que, na verdade, significam apenas e tão somente outras formas de desqualificação.

Era assim com Joana. Quando queria deliberadamente chateá-la, Arnaldo ironicamente a chamava de “Senhora”, “Ilustre Senhora” ou outras coisas do gênero. Bastante criativo, sempre inventava algo semelhante. Só o tom e a acidez da voz é que nunca mudavam. Desde a adolescência fora assim. Apenas o adjetivo havia mudado. Pouco adiantava ela sinalizar o quanto a chateava. Ele insistia, demonstrando inclusive um prazer mórbido que crescia na mesma proporção da mágoa que provocava.

Pensando na velha máxima feminista de que “o que é pessoal, é também político” dá para considerar que a relação íntima entre duas pessoas é também marcada pelo quanto a sociedade considera ou desconsidera os sujeitos sociais. As relações entre homens e mulheres não escapam a esta regra e encontram-se permeadas pelo que ocorre tanto no seu centro como nas fímbrias, tanto no público quanto no privado. Explico melhor: na medida em que “Senhora” significa um tratamento respeitoso, cordial e afável, é necessário travestí-lo de ironia para que reflita desrespeito, desatenção, desconsideração. Visto sem tal adereço é tido como manifestação de cordialidade, o que justifica, inclusive, a reação de Arnaldo quando, finalmente, depois de muito tempo e armada de coragem, Joana reclamou: “Não consigo mais deixar passar quando você fala assim, não adianta. Para dizer a verdade, nunca gostei, tanto quanto, na adolescência não gostava de ser chamada de Fresca…” Dando-se a não entender, ele responde: “Você está ficando louca, o coisa ruim está só na sua cabeça, o jeito que eu falo é respeitoso e inocente. Este é meu jeito, você sabe que trato todo mundo assim, não tem nada demais…” E continuou daí por diante, desqualificando tudo, inclusive e principalmente a chateação da mulher.

Tratamento respeitoso? Tanto quanto os políticos quando estão na tribuna chamam seus oponentes de “Ilustre Parlamentar” ou “Nobre colega”, sabendo-se que de ilustre ou nobre, na sua opinião, o colega não tem nada. Inocente tanto quanto piadas ou propagandas que alardeiam características específicas das pessoas que fogem ao padrão socialmente aceito como os negros, os homossexuais, as loiras (depois da música achincalhando mulheres de baixa escolarização) etc. Estragando tudo? Tanto quanto a mídia quando mostra o que deveria ficar embaixo do tapete. Louca? Não seria também esta uma excelente forma de desqualificação das mulheres, relacionada à célebre e histórica histeria (loucura relacionada ao útero e doença que homem nenhum poderia ser acometido, na opinião dos médicos da Idade Média e início da Moderna)?

A violência permeia a vida, mesmo quando não nos damos conta dela. É preciso ficar atento para não ceder aos seus achaques. Vale pensar até quando vamos inescrupulosa e descompromissadamente achar que não têm nada demais tratamentos travestidos, piadas maldosas e gozações desrespeitosas. Se o ser humano é um ser social, para viver bem é preciso conviver melhor ainda. E como tudo, para isto, há também uma regrinha básica: Trate o outro como gostaria de ser tratado. No caso das mulheres, se forem usados adjetivos que sejam cordiais, elogiosos, do fundo do coração, fraternais, desvestidos de ironia (esta técnica comunicativa grega é dificílima de ser usada e, se banalizada, só mostra a deficiência de quem a usa), bonitos, saborosos, que elevam o astral, que lustram e melhoram os egos, acalmam os ids e dão sustentação aos superegos de quem fala e de quem recebe…

(*) É enfermeira e colaboradora do J.A

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