Mário Prata (*)
Não vi o Jornal Nacional na sexta-feira passada. No sábado, pela manhã, no caderno Cidades, aqui do Estadão, vejo a foto de um operário sentado no seu trator, chorando. Não era uma reportagem, era uma pequena nota que dizia: “O operador de máquina Hamilton dos Santos, de 53 anos, sob pressão do oficial da Justiça e da Polícia Militar, não conseguiu acionar a retroescavadeira para demolir a casa de Ana Conceição, em Palestina, Salvador, e fazer a reintegração de posse. Diante da multidão clamando ‘pare’, silenciou, chorou, passou mal e foi preso pela PM por descumprir ordem oficial.”
No mesmo sábado, no Jornal Nacional, uma longa matéria sobre o seu Hamilton dos Santos. Repito, dos Santos. E fiquei sabendo que, no dia anterior, a Globo já havia feito uma reportagem mostrando, inclusive, o mastodonte do oficial da Justiça a prendê-lo em nome da lei. Em nome da lei. E ali, na tela da Globo, fui conhecendo um pouco mais do criminoso dos Santos. Tem nove filhos, o homem. A dona Ana, cuja casa ele deveria detonar, tem sete. Portanto, diante daquela retroescavadeira, 16 crianças brasileiras choravam. Pensei no Fome Zero e no Casa Zero.
No mesmo dia, recebo pela internet, mandado pelo João Ubaldo Ribeiro, uma relação dos maiores devedores da Previdência. Devedores estes que ainda não receberam intimação de prisão e nunca receberão. Dê uma olhada na turma que anda nos devendo por aí: Transbrasil, R$ 780 milhões. Estado de Goiás, R$ 685 milhões. Encol, R$ 630 milhões. Varig, R$ 560 milhões. Vasp, R$ 476 milhões. Banco Itaú, R$ 380 milhões. Caixa Econômica Federal, R$ 360. Mendes Júnior, R$ 355. Unibanco, R$ 321 milhões. E por aí vai, incluindo vários times de futebol. Se eu não estou enganado, essas empresas recolheram dos funcionários (como o seu Hamilton) e não repassaram ao governo. Só o que eles devem, paga a dívida externa do Brasil. E sobra. E prenderam o seu Hamilton. Simplesmente porque ele não quis passar o trator em cima de uma família inteira que, provavelmente, vem pagando os seus tributos direitinho.
A reforma da Previdência do governo Lula vai cobrar desses caras ou só dar ordens ao seu Hamilton? É triste viver num país assim. O gesto humano não vale nada diante de uma Polícia Militar desqualificada e corrupta. E os nossos jornais impressos (ao contrário da Rede Globo) deram apenas uma notinha sobre o tratorista, numa página 6 do caderno C. Em páginas mais nobres, os balanços e os assombrosos lucros de empresas com as quais a gente sempre está se esbarrando.
Mas são os operários, os trabalhadores, que estão dando o exemplo do que é ser brasileiro. Um deles na Presidência da República, o outro chorando com o seu trator desligado. Enquanto isso, o povo gritava: pare, pare, pare! Era a voz do povo (embora a frase possa parecer meio festiva) dizendo pare! A verdade é que pessoas como o seu Hamilton ainda me fazem acreditar no meu País. E me orgulhar dele.
(*) Comentário transcrito do Estadão, a pedido de leitores do JA, enfocando fato da reflexão brasileira.