Rosa Godoy (*)
No fundo da avenida, o outdoor se movimenta lentamente provocando no corpo e na alma a vivificação da lembrança do que já foi. Outras imagens se sobrepõem àquela já conhecida, amalgamando passado e presente, na sedução do produto. Ela protagoniza e testemunha a cena. Recorda…
Se agora ele é apenas chamariz para venda, noutros tempos já foi prazer e é nisto que reside a saudade, definida como triste e sofrida presença do ausente. A necessidade recriada provoca sede, não só do precioso líquido, que já brilha na retina, como da situação em que foi saboreado, que reluz no pensamento. A inexorável vontade de reviver o sabor e o momento surge forte, pungente. Quanto não daria para voltar no tempo e ter de novo a sensação gostosa de sorvê-lo deslizando suave na garganta, inebriando cada célula, com o frescor que liberta o sedento da sede! Quanto não daria para voltar no tempo para reviver o calor da ternura que emoldurava a cena em que pela primeira vez o saboreou, libertando-a como o carente da carência, aprisionando-a para sempre, como o querer na querência!
A lembrança é tão forte que chega a sentir-lhe o gosto na garganta seca. Nos ouvidos, tilinta o riso claro e cristalino dos amigos, brindando a vitória da alegria, recordando poucas e boas dos tempos de antanho. Ainda ri da cara de decepção do cantante improvisado ao deparar-se com o violão faltando uma corda. Garantiu o show mesmo assim, o persistente. Rindo, chora e as lágrimas confundem-se com a chuva fina que invade a fresta da janela. Mal tem tempo de fechá-la quando o sinal abre e as buzinas despertam-na do enlevo. Faz tempo e parece que foi ontem. O futuro sabe que existe, mas gostaria de antecipá-lo para hoje, que se sente tão só. Lamenta!
Implacável, o trânsito segue, empurrando-a para frente. Não adianta querer voltar, nem no tempo, nem no caminho. Capitulada, antes de acelerar, lança um último olhar à imagem e ela, ao longe, quase distorcida, parece acenar-lhe um adeus.
O presente surge num raio, lançando-a na vida de agora: os filhos esperam para o jantar. Ainda acalentando o sonho do amanhã, despede-se do instante de saudade…
(*) É colaboradora do JA.