O amor também mata

Fátima, 32 anos, branca, católica, casada, nunca trabalhou fora. Teve 4 filhos com o marido. Nunca teve outro homem. Recentemente, soube estar soropositiva para HIV. Emocionada, conta o drama que está vivendo:

“Antes, nunca imaginei a possibilidade de estar com Aids. Só fiquei sabendo quando meu marido adoeceu. Sempre pensava que era mulher de um homem só, que não corria risco. Burra, nunca me liguei no detalhe de que ele dava os pulos fora de casa. Ele negava, mas eu tinha certeza que ele vivia cheio de mulheres na rua. Uma vez tivemos a maior briga porque no pré-natal descobri que estava com sífilis e ele não queria assumir que foi ele que me contaminou. Só que entre a sífilis e a Aids tem a maior distância.”

Este é o depoimento de mais uma mulher vítima da Aids transmitida por parceiro fixo, no contexto de uma relação marital estável que constitui, atualmente, a principal modalidade de contaminação das mulheres pelo HIV.

De alguns anos para cá houve aumento significativo da participação feminina no perfil da epidemia de Aids no Brasil, constituindo a chamada feminização da epidemia. A participação das mulheres tem sido relativa e absoluta, em decorrência do aumento da transmissão heterossexual e diminuição entre os transfundidos (que tiveram transmissão por transfusão de sangue) e hemofílicos. Houve também aumento da contaminação por uso de drogas, inclusive de mulheres de companheiros usuários de drogas. Outro complicador da feminização da epidemia foi o aumento do número de casos de contaminação perinatal, decorrente do aumento da transmissão vertical, ou seja, grávidas contaminadas que geram conceptos soropositivos.

Juvenização

As mulheres contaminadas também são mais jovens que antes, causando a juvenização da epidemia, com diminuição da idade média dos contaminados. Antes a faixa etária mais atingida era de 20 a 39 anos, agora é de 20 a 29 anos. Além disso, a epidemia da Aids interiorizou, foi dos grandes centros para o interior do país. Hoje, metade dos municípios brasileiros têm casos notificados.

E, por fim, se denota a pauperização da epidemia. Medindo-se a pobreza pelo grau de escolaridade, constata-se que o nível de escolaridade das pessoas soropositivas está cada vez mais baixo. No caso das mulheres 78% das notificações de novos casos se referem a mulheres de baixa ou nenhuma escolaridade. Isto também, porque coletivamente, as mulheres são sempre mais pobres que os homens, mesmo entre os trabalhadores e trabalhadoras.

O triste é que a responsabilidade pela infecção e morte não está em cada mulher solitariamente, mas nos padrões sociais responsáveis pela socialização das mulheres e dos homens, bem como das relações entre eles.

Segundo Dirce Guilhen, autora da tese intitulada “Escravas do Risco”, defendida na Universidade de Brasília em 2.000, “enquanto a vida privada – e obviamente a sexualidade doméstica – simbolizavam a pureza, a sacralidade e o domínio sobre o feminino, a vida pública era uma prerrogativa masculina, estando estreitamente associada ao mundo do trabalho, já que ao homem cabia o papel de provedor. Mas é precisamente no espaço público, poluído pela presença de perigos e de pessoas perigosas que se localiza a dramaticidade da vulnerabilidade feminina: as tentações e as possibilidades de contágio. A mulher em casa, em um relacionamento matrimonial com um único parceiro, estaria segura e protegida pelo vínculo matrimonial. Neste universo persistem diferenças significativas na socialização sexual de homens e mulheres: existe uma certa natureza masculina, insaciável, incontrolável, mas perfeitamente tolerada pelas mulheres, desde que o ambiente doméstico reproduza o ideal do amor romântico, da fidelidade como requisito primordial. Em nome desta verdade incontestável, as mulheres foram se transformando vagarosamente em escravas do risco”, o que as tem levado à contaminação e à morte por Aids.

E a prevenção, como fica? Quanto a isso, Fátima, a protagonista da história trágica com que iniciei este texto, é enfática: “O uso da camisinha é complicado porque as mulheres não pensam no risco que correm quando estão dormindo com seus companheiros e então não pensam em se prevenir destes riscos. Os homens não têm coragem de assumir que estão levando risco para suas mulheres e, se por acaso, elas falam em usar a camisinha, eles logo convencem que não é preciso, que não tem risco nenhum e não aceitam usá-la. E o pior é que a gente acaba se convencendo e aceitando… por amor”. Em outras palavras, como no caso dela, como de tantas outras, o amor também mata.

(Rosa Godoy)

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