CLARICE SPITZ
Situado em uma zona de alta tensão no Oriente Médio, vizinho do Afeganistão e do Iraque, o Irã é um dos países que deve ganhar projeção no cenário mundial em um curto espaço de tempo por fazer parte de uma estratégia de projeção de poder dos Estados Unidos, segundo José Luiz Niemeyer, 38, professor de Relações Internacionais do Núcleo de Análise de Políticas e Estratégia da USP (Universidade de São Paulo).
“Parece que o Irã é a bola da vez para se pensar a política internacional, principalmente no Oriente Médio”, afirma Niemeyer.
De acordo com ele, independentemente do presidente que for eleito em 2 de novembro [data da eleição presidencial nos EUA], o Irã, a recente polêmica a respeito do direito de enriquecer urânio e a possibilidade de se desenvolver um programa nuclear estarão na mira do governo americano: seja por meio da diplomacia, seja pela guerra.
Leia abaixo a entrevista concedida, por telefone, à Folha Online:
Folha Online – O relatório divulgado pela comissão parlamentar que investigou os atentados do 11 de Setembro concluiu, entre outras coisas, que os 19 terroristas que participaram dos atentados tinham vínculos maiores com o Irã do que com o Iraque de Saddam Hussein. A administração de George W. Bush [presidente dos Estados Unidos] disse diversas vezes que Teerã tem ligações com o terrorismo internacional. O Irã seria o próximo alvo dos EUA?
José Luiz Niemeyer – Não se pode esquecer que, quando houve a Guerra Irã-Iraque, na década de 80, os EUA ficaram do lado do Iraque. Ali já indicavam uma preferência estratégica em relação ao Iraque contra o Irã. O Irã tradicionalmente traz problemas do ponto de vista estratégico no Oriente Médio para os EUA. A possibilidade de enriquecimento de urânio por Teerã causa arrepios a Israel. É uma relação conturbada e não é de agora. Do ponto de vista geopolítico, há uma necessidade de projeção de poder dos EUA no Oriente Médio, principalmente para fornecimento da matéria-prima fundamental para os americanos, o petróleo. Pela lógica, depois de dominar política, estratégica e militarmente o Iraque, o Irã deveria estar na seqüência.
Folha Online – Os EUA têm outra maneira de conseguir petróleo?
Niemeyer – Em ciência política, nós trabalhamos com cenários prospectivos. O Oriente Médio representa fornecimento de petróleo. É uma questão de sobrevivência. Os EUA recebem petróleo em larga escala da Venezuela, da Arábia Saudita e de países do Oriente Médio. A Venezuela não é mais um parceiro totalmente confiável em relação ao fornecimento de petróleo. Então, eles [os EUA] têm de garantir o fornecimento de petróleo vindo do Oriente Médio e para isso é fundamental a projeção de poder na região. Logo aqueles países-chave terão que ser dominados, ou do ponto de vista diplomático, que é mais lento, ou pela força, que tem um resultado de curto ou médio prazo, como ocorreu no Iraque.
Folha Online – Nesse caso, faz diferença se o candidato a ganhar as eleições de 2 de novembro for John Kerry [democrata] ou George W. Bush [republicano]?
Niemeyer – Muitos analistas dizem que a vitória de Kerry seria melhor para o Brasil, mas isso é muito pouco claro para mim. A política americana desde a Segunda Guerra Mundial [1939-1945] tem a mesma linha. Um governo democrata pode trazer uma coloração mais amena, mas a defesa dos interesses econômicos, seja do ponto de vista político, diplomático ou da estratégia militar pura, serão sempre defendidos. Talvez Kerry não faça com o Irã o mesmo que Bush, porém, o democrata vai ter que olhar o Oriente Médio com o mesmo olhar estratégico.
Folha Online – Na opinião do sr., o Irã deu suporte a terroristas após o 11 de Setembro? Qual a ameaça real que o Irã representa em termos de terrorismo internacional?
Niemeyer – Houve um certo apoio durante a invasão militar do Iraque (2003), quando o Irã abriu as fronteiras para que lideranças iraquianas pudessem se mover. Com relação à pós-invasão do Iraque, há uma influência dos grupos xiitas iranianos, que predominam no poder de Teerã, em relação a grupos xiitas iraquianos. E essa aliança que era difícil na época de Saddam [que é sunita], entre xiitas iraquianos e xiitas iranianos, é bem mais possível do ponto de vista religioso e pragmático da religião. Essa aliança pode criar uma capilaridade de interesses que permita que esses grupos auxiliem atentados terroristas ou ações de levante contra tropas no Iraque ou numa possível interferência dos EUA e de um possível aliado em relação ao Irã. Pode estar sendo criada uma resistência de fundamentação religiosa entre xiitas do Iraque e do Irã.
Folha Online – Em junho último, a AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica) repreendeu duramente Teerã por não cooperar plenamente com a agência fornecendo informações sobre armas químicas. O sr. acha que o Irã dispõe de um arsenal atômico relevante?
Niemeyer – A questão da pesquisa nuclear é o tipo de informação que uns dizem uma coisa e outros dizem outra. Por exemplo, o Brasil desenvolve um programa nuclear de enriquecimento de urânio e tem inclusive uma centrífuga muito eficiente. O Brasil, que é um país que não tem a menor intenção de produzir uma bomba nuclear, tem em curso um processo de enriquecimento de urânio para fins civis e comerciais, mas que é um processo muito parecido do ponto de vista tecnológico com o que está ocorrendo com o Irã. Esse tipo de discussão sobre quem pode produzir desenvolver suas pesquisas na área nuclear acaba produzindo um precedente em nível internacional. Qual o nível de autonomia que um país pode ter um país para desenvolver suas pesquisas na área nuclear, sejam civis ou militares?
Folha Online – E como definir isso?
Niemeyer – Veja a ONU (Organização das Nações Unidas) e suas agências. Se formos analisar, por exemplo, os períodos anteriores às duas intervenções dos EUA no Iraque (1991 e 2003), vamos perceber que eles fazem sempre o mesmo caminho. Eles seguem a norma internacional, discutem na ONU o tema que os incomoda como superpotência. Quando se esgotam os canais diplomáticos e a ONU mostra toda a sua ineficiência ao não conseguir cumprir sua capacidade de fazer valer a lei internacional, os EUA, como superpotência, vão exercer pressão. Primeiro do ponto de vista diplomático, querendo promover embargos e, depois de um certo tempo, projetando alguma ação. Mas esse é um cenário de curto e médio prazo, talvez de um ano ou um ano e meio.
Acho que os meios de comunicação vão cada vez mais discutir esse assunto. Parece que o Irã é a bola da vez para gente pensar a política internacional principalmente no Oriente Médio.
Folha Online – O Irã está fornecendo informações sobre o desenvolvimento de centrífugas e enriquecimento de urânio de forma inadequada como afirmam os EUA?
Niemeyer – Veja que mesmo para o Brasil, que tem uma postura de política externa secular e pacífica, que preza a norma internacional e que não tem postura belicosa, é difícil. O Brasil anunciou que quer resguardar sua soberania em relação às inspeções da ONU –que serão administradas e organizadas pelas autoridades brasileiras. Imagine o Irã, que está em uma região sensível, estratégica, entre dois países que sofreram invasões militares por parte dos EUA, Iraque e Afeganistão. A invasão do Afeganistão só teve sentido se você pensar no país como um espaço vazio, onde possíveis oleodutos e gasodutos das ex-repúblicas socialistas soviéticas, possam levar petróleo e gás do mar Cáspio para os EUA e para o mundo ocidental a partir do oceano Índico. Não se pode mais imaginar a sociedade americana sem petróleo. Se aumentar em US$ 2 [R$ 5,80, aproximadamente] o preço da gasolina, o Adam –um exemplo do típico cidadão americano da classe média do Arkansas [sul dos EUA]–, não vota nem em democrata nem em republicano.
Folha Online – E Israel?
Niemeyer – Israel também tem uma influência muito grande na Casa Branca, sobretudo no governo de George W. Bush. Israel é um país atômico e o Irã daqui a algum tempo também pode desenvolver um vetor nuclear –e fazendo isso equilibra suas forças com Israel. Isso interessa muito pouco a Israel que tem uma necessidade de domínio de território naquela região. Se outro país naquela região tem acesso a armas nucleares ou a outros armamentos mais avançados desestrutura o equilíbrio de forças naquela região. A bomba atômica não é usada para guerra. Ela serve muito mais para se mostrar que se poderia fazer uma guerra.
Folha Online – O principal argumento dos EUA e do Reino Unido para começar a Guerra do Iraque foi que Saddam Hussein teria armas de destruição em massa, o que foi desmentido pelo relatório Duelfer. O Iraque de fato utilizou armas químicas durante o conflito contra o Irã. O sr. acha que esse argumento, de armas de destruição em massa, pode motivar uma eventual guerra contra o Irã?
Niemeyer – Eu acho que sim. Apesar de chocar muitos analistas, eu não considero esse argumento falho. Se Saddam Hussein não tem armas de destruição em massa, ele as teve, e as usou contra os curdos, no norte do Iraque, e contra o Irã. Ele de alguma forma tinha um programa de destruição em massa. Eu acho esse um argumento forte. A questão é saber como se deve agir do ponto de vista do sistema internacional, como confrontar países que têm esse tipo de armamento ou de vetor nuclear: pela força e pela ação preventiva ou pelas normas do Conselho de Segurança da ONU. O mundo hoje vive um processo contínuo de preparação para a guerra. A superpotência [EUA] e seus aliados vivem uma prontidão estratégica para o conflito que perdura. Se durante a Guerra Fria os EUA tinham competência para vencer duas guerras ao mesmo tempo: uma guerra nuclear contra a URSS e uma guerra convencional, essa competência continua a existir e está sendo aprimorada.