Luiz Fernando Mussolini Júnior (*)
É sabido que a Constituição Federal confere competência aos municípios para instituir imposto sobre serviços de qualquer natureza, não compreendidos na esfera impositiva dos Estados (de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicações), definidos em lei complementar.
É igualmente notório, nessa direção, que a Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003, veio ampliar muito a lista de serviços passível da incidência do ISSQN, incorporando uma série de atividades antes não arroladas, adaptando a legislação à evolução da economia, não sem abarcar situações fáticas que fatalmente serão objeto de longas discussões judiciais, por não consubstanciarem, em verdade, prestação de serviços.
À vista dessas inovações e partindo-se da premissa irrefutável de que a listagem dos serviços é taxativa, como consagrado jurisprudencialmente, deriva a certeza de que a cobrança do ISSQN, que era procedida por muitos municípios sobre atividades não expressamente catalogadas no rol anterior, foi indevida, de sorte a propiciar aos contribuintes o ressarcimento dos valores pagos, pelas vias da repetição do indébito ou da compensação administrativa, esta última forma naquelas cidades em que há previsão própria na legislação local, sendo ainda certo que não é caso de incidência das restrições do artigo 116 do Código Tributário Nacional, por não se tratar de tributo objeto de repercussão jurídica.
Ocorre, ademais, que sobreveio, em 19 de dezembro de 2003, a Emenda Constitucional nº 42 (Reforma Tributária), publicada em 31/12/2003, a qual, entre outras medidas, adicionou a alínea “c” ao artigo 150 do texto original, instituindo uma nova limitação ao poder de tributar e, como contrapartida, nova garantia aos contribuintes, assegurando-lhes que é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios cobrar tributos antes de decorridos noventa dias da data em que seja publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado, ainda, que o “dies ad quem” supra referido não pode estar inserido no mesmo exercício financeiro, salvo as exceções previstas para alguns casos de empréstimos compulsórios, para os impostos extraordinários de guerra e para os chamados “impostos regulatórios” (importação, exportação, IPI e IOF)
Assim sendo, e considerando que a inserção nas respectivas legislações municipais de “serviços novos”, aptos a sofrer a incidência do ISSQN, com arrimo na enunciação feita pela Lei Complementar nº 116/03, deve ser qualificada como “instituição de tributo”, exação antes inexistente dentro do ordenamento, a exigência do imposto sobre as atividades até então não tributáveis somente é possível decorridos noventa (90) dias da publicação das regras legais próprias.
Sucede, entretanto, que antes de editada a Emenda Constitucional 42/03 (31/12/2003), a esmagadora maioria dos Municípios já havia aprovado leis estipulando a cobrança do ISSQN sobre serviços que antes não eram tributáveis, isto a partir de 1º de janeiro de 2004, em atenção ao chamado princípio da anterioridade, posto no artigo 150, III, “b”, da Constituição Federal.
Ignorando, como se isso fosse juridicamente admissível, o impedimento adicional colocado pela nova norma constitucional, que tem eficácia imediata, tais municípios iniciaram a exigência do imposto sobre os ditos “serviços novos”, logo no primeiro dia de 2004.
Tal procedimento, na medida em que manifestamente inconstitucional, levou diversos contribuintes, em muitos Municípios de vários Estados da Federação, a buscar amparo no Poder Judiciário, com o fito de não se submeterem à nova tributação antes de exaurida a chamada “noventena”, isto é, antes de passados noventa (90) dias da publicação das leis municipais que a instituíram. Exemplificando: se a nova legislação municipal foi editada em 30 de dezembro de 2003, o ISSQN sobre as atividades antes não abrangidas somente poderia alcançar as operações posteriores a 29 de março de 2004.
As medidas liminares pleiteadas têm sido invariavelmente concedidas, reconhecendo-se cuidar de cobrança precipitada, feita ao arrepio de vedação constitucional. Há, inclusive, decisão do Primeiro Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo admitindo a procedência da tese.
Para aqueles contribuintes que ainda não se socorreram da Justiça na preservação dos seus interesses, sobrará, para a hipótese plausível de vingar o entendimento cuja consolidação se inicia, buscar a devolução dos valores indevidamente recolhidos dentro do período da “noventena”, ou através da repetição do indébito (administrativa e/ou judicial), ou mesmo pela compensação contra recolhimentos futuros, isto nos municípios que a prevêem.
Importante assinalar que a restituição independerá da prova da assunção do ônus econômico do imposto ou da autorização do tomador dos serviços, pois o ISSQN não está entre aqueles impostos tidos como passíveis de repercussão, não se aplicando, portanto, as limitações do artigo 166 do Código Tributário Nacional.
Essas considerações se fazem relevantes para o setor de prestação de serviços, ultimamente tão atingido em sua capacidade contributiva, haja vista sua injusta, para não dizer injurídica, sobre-oneração pelas chamadas “contribuições sociais não-cumulativas”, o PIS e a COFINS.
(*) É sócio-diretor de Piazzeta, Boeira, Rasador e Mussolini-Advocacia Empresarial, professor titular em Direito Tributário no Centro Universitário Álvares Penteado UniFECAP e juiz do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo.