Walter Feldman (*)
No início da civilização a Fundação de uma cidade era precedida da busca de sinais religiosos que de alguma forma definissem um centro, um eixo, um ponto de referência que servisse para criar uma ordem em oposição ao caos da natureza. Nas palavras do pensador Mircea Eliade:
“Para viver no mundo é necessário funda-lo – e nenhum mundo pode nascer no caos da homogeneidade e da relatividade do espaço profano. A descoberta ou a projeção de um ponto fixo – o Centro – equivale à criação do mundo”.
A fundação de uma cidade era, então, sobretudo um ritual religioso que demarcava a fronteira entre a ordem da cidade e o caos externo. Ainda nas palavras de Eliade:
“Nas sociedades tradicionais, é a oposição que elas subentendem entre seu território habitado e o espaço desconhecido e indeterminado que o cerca: o primeiro é o mundo, o resto já não é um Cosmo, mas uma espécie de ‘outro mundo’, um espaço estrangeiro, caótico, povoado de espectros, de demônios, de ‘estranhos'”.
A própria estrutura da cidade também não era casual, mas buscava de alguma forma reproduzir uma determinada visão de mundo, geralmente expressa de forma religiosa, porque a definição do espaço da cidade “é eficiente na medida em que ele reproduz a obra dos deuses”.
Assim se enxergará em todas as culturas alguns vestígios desta definição de um centro e da separação do espaço profano e do espaço sagrado. Mesmo quando o sentido religioso ou cosmogônico já se perdeu ainda se mantém o ritual.
As cruzes que os conquistadores europeus plantavam as novas terras conquistadas como sua primeira ação, o pelourinho que marcava a autonomia de uma vila, a instauração de uma igreja ou capela como ato fundador de uma cidade como era até bem recentemente, todos estes atos reproduzem aqueles antigos rituais que ao estabelecer um “axis mundi” criam o ponto de referência a partir do qual o espaço seria organizado.
A sociedade se secularizou, o mundo – para usar a expressão de Weber – se desencantou e os velhos rituais que organizavam o espaço perderam o sentido e a motivação aparente, no máximo persistindo enquanto uma tradição cujo sentido já não tem mais significado.
“Já não é possível”, diz Eliade, “nenhuma verdadeira orientação, porque o ponto fixo já não goza de um estatuto ontológico único; aparece e desaparece segundo as necessidades diárias”.
Portanto:
“Já não há 'Mundo’, apenas fragmentos de um universo fragmentado massa amorfa de uma infinidade de lugares onde o homem se move forçado pelas obrigações de toda a existência integrada em uma sociedade industrial”.
Para mim a grande tarefa que homens públicos e sociedade civil, políticos e técnicos, tem de realizar, e rápido, é descobrir novos e critérios para a definição do eixo, novo ponto de referência não só material, mas simbólico e efetivo, capaz de articular a organização das cidades e servir como este pólo organizador. É evidente que não falo de um ponto geométrico, nem de um elemento de uma planta urbana, mas de um conjunto de valores aceitos por todos, capaz de, justamente por ser consensual, estabelecer as políticas urbanas.
O Estatuto da Cidade é um grande passo neste sentido, é um embrião deste novo ponto de referência que organiza o espaço ao estabelecer, por exercer, de forma clara a responsabilidade social da propriedade e ao colocar o interesse coletivo acima do individual, mas não de forma impositiva ou arbitrária, mas segundo regras claras e objetivas.
Contudo, ele não detém aquela sacralidade das velhas regras, dos velhos símbolos, não detém poderes mágicos, nem é um amuleto. Dentro do espírito deste nosso mundo moderno é apenas uma ferramenta, incapaz de produzir efeito se não for manuseada com destreza.
(*) É presidente da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo e médico, 48 anos.