Duas irmãs, duas vidas, uma só alma, um só coração

– Pode pedir, o que você quer de presente?

– Sério, pode ser qualquer coisa?

– Pode!

– Você me leva prá ver a Tide? Quero ficar um pouco lá com a minha irmã. Estou com uma saudade enorme dela.

– Puxa, tão fácil? Pensei que você fosse pedir alguma coisa “mais impossível”. Vamos já ou quer arrumar a mala primeiro?

Era sempre assim. Uma das coisas que ela mais gostava era de estar com a irmã. Doente, era o seu bálsamo, a sua alegria, o que completava o tratamento. Quando não podia ir, pedia à irmã que viesse e esta lhe fazia a vontade de imediato. Se isto era verdade quando a doença já consumia suas forças, mais verdade ainda fora durante toda a vida. Eram verdadeiramente inseparáveis.

Cresci ouvindo histórias das duas. Gostavam de contar sobre a juventude difícil mas alegre, a proeza do enxoval feito a quatro mãos. Uma trabalhava e comprava os tecidos, o material e a outra costurava, bordava, enfeitava, criava com mãos de artista o que seria de ambas, até os vestidos de noiva. Mesmo na escolha dos maridos foram parceiras. Antes amigos, depois do parentesco tornaram-se inseparáveis jubilando-se nas vitórias e amparando-se nas dificuldades, verdadeiramente irmãos, até nas implicâncias e ranhetices quando avançou a idade.

Já avós, transformavam-se em duas garotas, chorando de rir ao lembrar da velha nona e imitar-lhe o forte sotaque ítalo-caipira: – Mitirrde, Therrezinha, acorda, as galinhas já sairom todas do polerro! E elas lá queriam saber de galinhas, poleiros ou de sair da cama? Queriam mais era continuar dormindo. Alheias aos apelos, toreavam a nona e só saíam da cama quando lhes dava na telha ou quando a mãe entrava no meio.

Outras vezes, passavam horas e horas falando da casa onde nasceram, das artes e brincadeiras de criança, dos outros irmãos, dos gostos da vida. Referiam-se pouco às tristezas e aos desgostos, embora houvesse muitos. Ainda assim, o que marcavam era a positividade dos mesmos. Como quando o pai morreu. O que Therezinha mais lembrava era da irmã (bem pouco mais velha que ela, que tinha apenas 6 anos e era a caçula) confortando-a, levando-a para longe do pai defunto que fora obrigada pelos adultos a beijar e que não gostara nada, nada. Nunca se esqueceu do toque gelado que lhe provocou arrepios nem que foi salva pela prontidão da irmã que lhe abreviou o sofrimento. A este primeiro cuidado, seguiram-se outros da sua sempre fiel protetora, enquanto viveu.

Quando não se podiam visitar, telefonavam-se, às vezes apenas para comentar quem morreu, quem nasceu, quem chegou, quem partiu, num longo e detalhado ritual, não importando nem a distância nem o tempo que teimavam em tentar separá-las, sem sucesso.

Quando Therezinha se foi, Tide murchou, encolheu. Faltava-lhe a companhia, a vitalidade e a energia da irmã. Apesar da dor e também como forma de driblá-la, acolheu ainda mais os filhos da outra (eu, em especial), preenchendo o quanto pode o vazio da orfandade. Foi fundamental, como sempre – uma rocha de mel.

Aparentemente nada mudou, continuou fazendo as tarefas do cotidiano, apenas com alguns tropeços de saúde. Como nunca se queixava, parecia estar bem, até que se foi no silêncio da noite, sem sofrimento, bem ao contrário do que tinha sido o final de vida da grande companheira e por isto tanto havia sofrido. Os que acreditam poderiam dizer que sua passagem foi delicada e cuidadosamente providenciada pela irmã, como merecia.

De qualquer forma, assim ou assado, morreu como viveu: sem barulho nem alarido, sem atrapalhar nada nem ninguém, apesar da força interior e da determinação que a caracterizavam. Era a Grande Mãe, aquela que com firmeza, sabedoria e generosidade adivinhava os pensamentos e os desejos dos que a cercavam e tudo fazia para que fossem felizes. Como no poema de Cora Coralina, era o “colo que acolhe, o braço que envolve, a palavra que conforta, o silêncio que respeita, a lágrima que corre, o olhar que acaricia, o desejo que sacia, o amor que promove”.

Foi isto tudo e muito mais também para a irmã, assim como recebeu dela carinho e apoio para continuar sendo o que era. Agora, depois de quase quatro anos de separação, finalmente estão juntas outra vez e para sempre, lá onde ficam os límpidos de alma pela missão cumprida. Por isto, uma coisa é certa: no dia 22 de janeiro passado, a tristeza que abalou a Terra foi estranhamente contraditória à alegria que encantou o Céu. À dor da separação dos muitos que ficaram sem a Tide (o marido Durval, os filhos Luiz Attílio, José Durval, Geraldo, Paulo, Marcos, Neusa e Márcia, noras, genros, netos, bisnetos, parentes e amigos), correspondeu a felicidade do seu reencontro com a irmã, Therezinha. Mais que amigas, verdadeiras companheiras na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, do início ao fim dos tempos, agora formam uma só alma, um só coração. Quase posso ouvi-las rindo e colocando (literalmente) a vida em dia. Se nada mais as separa, a eternidade será pequena para tudo o que podem continuar vivendo e fazendo juntas pelos que amam, por todos nós.

Para mim, filha de uma e de outra, de barriga e de coração, ficam a dor e o vazio da dupla orfandade, mas muito acima disto, tudo o que ganhei ao partilhar tão profundo e verdadeiro amor durante toda a minha vida. É ele que me permitirá reencontrá-las um dia, se eu for merecedora de tal privilégio. Peço a Deus e a elas que me iluminem para que isto seja possível. Até lá, acalentarei cuidadosamente a saudade, que é o que me torna viva a sua lembrança.

Rosa Godoy

PS – Dedico este texto à minha tia e mãe de coração, Mathildes Caracine de Freitas e à sua irmã, Therezinha Corazzini Godoy, minha mãe de barriga e coração.

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