As dores de Maria Das Dores

Rosa Godoy (*)

Às vezes, a gente se depara com histórias que parecem ficção, histórias inventadas, tiradas das páginas policiais de jornais que gotejam sangue. Essa é uma delas. Maria Das Dores engravidou de um homem casado. Jovem, bonita, o patrão cobiçou-a assim que entrou na fábrica. A vida de sonho terminou quando as regras falharam. Procurou-o, feliz, crente na surpresa agradável (afinal, todas as vezes que faziam amor ele prometia mundos e fundos à mulher da sua vida), porém, qual não foi a sua surpresa quando ele nem a deixou terminar de falar. Gritou como louco: que ela saísse de sua vida, que não usasse a gravidez para prendê-lo, que não tinha sido o primeiro e daí para frente. Ao chegar para trabalhar no dia seguinte, tinha sido despedida, por motivos relacionados à reestruturação funcional do setor. Quanto ao patrão, nunca mais ouviu falar dele. Mudou-se com a família para Curitiba, para gerenciar a fábrica de lá.

O sonho de ter a criança terminou quando uma amiga da família contou a seus pais sobre a gravidez. Praticamente obrigaram-na a abortar. Falaram, falaram, até que ela concordou. Não fica bem ser mãe solteira. O que vão dizer na igreja? E a família, como vai reagir? Tio João, homem de confiança, vai ajudar, não vai dizer nada a ninguém. Dono de farmácia, tem a solução… Assim foi. Cytotec. Fácil, resolve logo, amanhã nem vai se lembrar. A mão rechonchuda do tio acariciando suas nádegas foi ignorada pelos pais, agradecidos pela ajuda, devendo favores. Não fosse o enorme mal-estar e o susto de esvair-se em sangue em plena madrugada de Natal, inaugurou janeiro no pronto-socorro com aborto retido e infecção. A gravidez era de quase 4 meses.

No hospital, a experiência foi péssima. Não sabia o que ia ser feito, tinha medo. Ninguém falava com ela, apesar dos seus gritos, pedindo anestesia. Tinha ouvido falar de gente que operava sem anestesia quando fazia aborto. Somente uma mulher de branco a ajudou, segurando-lhe a mão antes de dormir. Acordou no dia seguinte com fortes dores na barriga e no coração. A primeira passou logo, com uma injeção também muito doída. A outra dói até hoje, por não ter sido forte o suficiente para lutar pelo filho. Frustra-se quando pensa que poderia ter uma filha de oito anos, sua companheira, sua alegria. Era menina, sonhou! Contraditoriamente acredita que tudo foi vontade de Deus, que lhe deu sofrimento merecido por ter-se relacionado com uma pessoa que não deveria, aquele cachorro.

Depois do aborto, a relação com o pai que já não era lá essas coisas, foi ficando cada vez mais complicada com ele lhe enchendo a paciência perguntando se ela tinha “muita necessidade de sexo”. Se assim fosse, que rezasse muito, que fizesse penitência para a vontade passar, como faziam as santas de antigamente. Com a mãe, as coisas não foram e não são melhores. Ainda hoje, Maria é a vergonha da família, castigo da mãe que abortou seu irmão, vingança de Deus pelo crime praticado. Interessante é notar que em nenhum momento há referência ao aborto de Maria como crime…

História inventada, tirada das páginas policiais de jornais que gotejam sangue? Antes fosse! Infelizmente é tão real quanto as duas grandes questões que traz à baila, entre outras. A primeira, a violência, evidencia-se em todas as relações afetivas estabelecidas por Maria: com o namorado, com os pais, tios, pessoal do hospital etc, determinada pela pouca valorização do poder decisório de uma mulher (quase criança) em relação à sua vida. Outros decidem por ela o destino do seu corpo, sempre segundo interesses alheios.

A segunda grande questão, a culpa, é determinada pela rigidez moral com que é tratado o aborto na sociedade, apesar de relativizado quando se trata de uma medida quase eugênico (para limpar a honra da família), em contraposição ao praticado pela mãe, antes do nascimento de Maria, sabe-se lá por que razões! Além dessa, há culpa pela fragilidade que a impediu de lutar pelo filho e em relação à sexualidade e ao uso do corpo, achando lícito tornar-se experiente depois do sofrimento, com o aborto configurando-se como rito de passagem para a idade adulta, com marcas profundas na sua constituição como sujeito social. História inventada, tirada das páginas policiais de jornais que gotejam sangue? Das Dores é real, como real são a sua vida e suas dores…

(*)É enfermeira e colaboradora do JA.

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