Rosa Godoy (*)
O trânsito está infernal. Terminar um dia especialmente pesado daquela forma é mais do que Lúcia pode suportar. A cabeça enxaquecosa lateja, a despeito do remédio engolido a tarde toda. O estômago revirado que o diga. Para completar a cena, uma chuva fina começa a brotejar do céu prometendo cascatear. Naquele dia, desafortunada e excepcionalmente o homem do tempo acertou. Azar!
Não pode deixar de esboçar um sorriso ao dar graças pelo carro novo. Fosse o antigo, que chovia mais dentro que fora, estaria mesmo perdida. Quantas e quantas vezes teve que estender plásticos sobre os bancos para minimizar os efeitos pluviais.
Tentando burlar a monotonia do trânsito que anda e para, anda e para, troca o disco pelo que acabara de comprar: um clássico, daqueles que não são todos os dias que se encontra. Já na primeira música, a emoção provoca um nó na garganta que teima em embolar cada vez mais. Na segunda, não há como conter o choro. Lágrimas descem copiosas pelo rosto, adubando a dor acumulada pela perda recente, pelo problema não resolvido, pelo futuro não sabido, pela incerteza que precede a mudança que não consegue evitar.
Pensa em telefonar para sentir-se menos só. Desiste, daria muito trabalho explicar o embargo da voz. Talvez parar em algum lugar, deixar o tempo e a chuva passar. Não, a cara está péssima, depois da quinta década, melhor não abusar da aparência, ela pode trair, desagradar. Talvez um lenço seja a melhor saída, pelo menos disfarça, mais para si que para os outros, os efeitos da emoção de intensidade quase descabida. Está ficando velha, boba e cada vez mais chorona.
Remexe a bolsa à procura do dito cujo quando desvia o olhar e vê a senhora que dorme tranqüilamente, recostada na janela de trás do carro ao lado. Os cabelos muito alvos e o rosto sulcado exibem as marcas do tempo, a sabedoria da experiência. A expressão serena traduz que não deve nada a si, ao mundo, à vida, nem mesmo à criança que, bêbada de carinho, dorme no seu colo. A cena é pictórica, espetacular.
Alvo certo da atração de Lúcia, ato contínuo, ela acorda e seus olhares se cruzam. Na fração de segundo em que ocupam o mesmo espaço, captam-se uma à outra, enovelam suas vidas, mãe e filha virtuais a companheirizar-se naquele instante fugaz. Uma que sente a dor e a outra que sabe como aplacar. A ternura abre caminho no concreto do asfalto, na buzina dos carros emaranhados no semáforo apagado e, como num filme, tudo se transforma em silêncio, em compartilha, em troca de energia. Impossível dimensionar o tempo. Um instante ou a eternidade?
Como se acordassem do sonho, sorriem uma para a outra, coroando a interação. Os carros se afastam, as vidas se descruzam para sempre. Lúcia sente-se em paz. Pelo menos por ora, a dor acaba de passar.
(*) É enfermeira e colaboradora do JA.