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A gente era feliz e sabia

Rosa Maria (*)

A rua era movimentada. A eterna algazarra das crianças pouco contrastava com a zoeira dos adultos. Também não era para menos. Os acontecimentos sucediam-se no dia a dia da vizinhança. Cada vez que chovia ou ventava um pouco mais forte, por exemplo, o fio de alta tensão caía e isso era fato suficiente quebrar a monotonia. Ato contínuo ao já conhecido estalo da caída do disjuntor, Dona Abadia era a primeira a botar-se prá fora de casa, chamando a todos, além de gritar feito doida em defesa dos passantes (apenas um ou dois a noite toda) para que não morressem eletrocutados. O vizinho da frente, fazia-lhe companhia, chamando atenção dos carros (tantos quantos os passantes) para que desviassem do fio potencialmente assassino. Todos, enfim, enfileiravam-se pela causa, defendendo o direito dos cidadãos de não serem vítimas do descaso das autoridades. Lá pelas tantas, chamada pelo único vizinho que tinha telefone (que também era dono da única TV da rua), chegava a “Força e Luz”. Aí, então, era um verdadeiro Deus nos acuda: todos falavam ao mesmo tempo e em diferentes ritmos, unos apenas na crítica ao serviço público, diga-se de passagem, de péssima qualidade. Isto durava toda a madrugada e era assunto para a semana ou até o próximo acontecimento.

E assim a vida ia tecendo seu fio, unindo famílias e amigos na saúde e na doença, na felicidade e na desgraça. Dona Mariquita, sempre presente quando se necessitava de coragem, foi a única que ousou reconhecer os corpos das duas irmãs e do cunhado mortos num acidente de carro que comoveu a cidade toda. A despeito do inusitado feito, que lhe afiançou o respeito de todos para sempre, nunca se recuperou totalmente do sofrido. Aos noventa e chumbo, ainda se recorda do fato quase como se tivesse ocorrido ontem. Apenas a coragem permaneceu a mesma.

Tinha também o Alder, o “repórter da rua”. Do alto da bicicletinha preta, adorava passar o tempo amealhando e anunciando fatos. Os nossos primeiros sutiã e o salto alto não lhes passaram desapercebidos. Com um indiscreto “onde vocês pensam que vão, com essa coisa toda?” abordou-nos naquela inesquecível tarde de domingo, à saída para o cinema. Morrendo de ódio e vergonha ainda tentamos disfarçar mas o “eterno chato” saiu rua afora conclamando a vizinhança para testemunhar a novidade. O mesmo estardalhaço fez no trágico 22 de novembro de 1963, quando passou a tarde toda anunciando aos quatro ventos a morte de John Kennedy. Até parecia que era parente de alguém da rua, tamanha a gritaria que fez. Da janela (onde passava a maior parte do dia, o que lhe rendeu o apelido), o irmão apenas confirmava com a cabeça, justificando o espanto e o descrédito de todos.

A rua continuava na praça, também palco de brincadeiras, brigas, namoricos, paqueras, paixões correspondidas e não correspondidas. O pequeno chafariz, que como fonte luminosa funcionou pouco, assim como os bancos, se falassem, teriam mundos e fundos para contar, pois que, inertes só na aparência, durante toda a vida registraram nos seus grãos a história daquele lugar e da sua gente.

Anos depois, ao rever os amigos, a minha saudade passa pela mesma rua, pela mesma praça e sinto a emoção redobrar. A casa (a mais movimentada da rua, com certeza) ainda está lá, quase como era antes. Recordo-me dos cômodos, dos móveis e, neles, de todos os que construíram a minha história. Nas entranhas daquele lugar reencontro principalmente o riso alegre da criança que habita(va) em nós. A gente era feliz e sabia…

Rosa Godoy

PS: Dedico este texto aos meus amigos daquele tempo, representados por Alder O. Bedran e Vera Lucy De Santi Alvarenga, sempre presentes naquela casa e no meu coração.

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