A força descomunal e letal da imprensa

Parte de uma entrevista, frase pinçada com maldade, repercussão de ponto-de-vista pessoal e familiar como sendo público, crítica de pequenas falhas dando a impressão de que o focalizado é digno de repulsa social, enfim, pelo rádio, televisão, revista ou jornal o escrevedor pode ser um assassino de valores humanos.

Efetivamente, a cada dia tem mais gente se drogando? E a maconha pode e deve ser permitida? Um tema discutido nas grandes e pequenas cidades.

Assim, diante do interesse, certo dia a jornalista Soninha aceitou a responder a companheiro da Revista Época. Não sabia que seria manchete de capa e que estaria estrelando uma quantidade de outdoors chocantes. Acabou demitida da TV Cultura e a Revista “Caros Amigos”, deste mês, concede-lhe espaço para limpar a barra e encaminhar o tema para discussão objetiva e com resultado real. Sem sensacionalismo.

O seu texto, de uma profissional que sentiu o efeito danoso de outro profissional da escrita, merece ser repercutido no Jornal de Araraquara. Ainda mais que mostra-se dona da situação no que tange às eventuais fumadinhas num baseado. “Caros Amigos” realimenta a discussão, fazendo justiça à companheira Soninha.

“A reação foi hipócrita e covarde”

por Soninha

Se eu tivesse apenas três palavras para dizer em público, obviamente elas não seriam “eu fumo maconha”. Porque dizer isso não é o mais importante nem o mais adequado, principalmente para quem tem pavor do assunto (para haver uma mudança de fato na sociedade, é preciso conversar com calma e firmeza com quem tem medo de maconha como do diabo).

Ao lado do malfadado outdoor da Época (que não ajudou a rever estigma nenhum, como eles propunham com a matéria), poderia perfeitamente haver outro com o Maracanã lotado dizendo “eu também”. Mesmo assim, a melhor maneira de começar a discussão certamente não é despejar nas ruas da cidade a minha foto sorridente dizendo “eu fumo”. Mesmo que a maconha fosse permitida, eu não posaria para esse “anúncio”!

É a velha, velhíssima história: pai e filho tomarem um pileque juntos faz parte do congraçamento familiar. O filho tomar um porre, “é coisa da idade”. Encher a cara na festa de casamento ou no coquetel de fim de ano da firma é comédia. Fumar um baseado é ameaça à família e ao progresso da civilização ocidental.

Eu só aceitei dizer que fumava porque, em todas as discussões sobre drogas, somos obrigados a ouvir “verdades absolutas” do tipo: “Quem fuma maconha é depravado, desvairado, desajustado e demente, e automática e inevitavelmente passa a cocaína, o crack etc”. A única maneira de confrontar esses mitos de maneira honesta e convincente é dizer: “Eu fumo e não sou assim; eu sou 'normal’!”

Não se trata da minha opinião, mas de um fato: assim como eu, milhares de pessoas usam maconha eventualmente e não são doentes ou dependentes, não têm problemas de relacionamento familiar (a não ser os “normais”…), não têm queda de rendimento no trabalho. Não buscam a droga por problemas de auto-estima, crise de valores ou falta de religião.

Eu trabalho (muito), levanto à noite para levar minha filha ao banheiro, acompanho a política com interesse, uso capacete, pago 13º para meus empregados, recolho cocô de cachorro da calçada… Tudo bem, nem sou tão normal assim, mas definitivamente não sou uma ameaça à sociedade.

Pensando no meu próprio conforto, eu teria deixado tudo exatamente como está. Não compro maconha, nunca tenho em casa, não fumo na rua e dificilmente teria problemas com a lei. Mas não aguentava mais as histórias de abuso por parte de policiais corruptos (quem não conhece uma dezena delas?), a opressão “alternativa” dos traficantes nas favelas e as tentativas militares de combater o tráfico – todo um teatro que interessa muito aos vendedores de armas, aos produtores e consumidores de manchetes sensacionalistas, e não resolve nada.

É claro que a maconha pode fazer mal à saúde, mas por esse critério talvez a carne vermelha devesse sair de circulação. Ou o açúcar refinado e o torresminho pururuca. E ela pode causar dependência, assim como as conhecidas drogas “lícitas”. Mas eu acredito sinceramente que o mal que um ou muitos baseados podem fazer não se compara ao mal da criminalidade e da desinformação, que atinge fumantes e não-fumantes.

É muito difícil seriamente a descriminação sem alguém vir com a história da “apologia”. Os especialistas no tratamento do abuso de drogas já admitiram que não adianta negar, nas campanhas de prevenção, que a droga dá prazer. A quem as pessoas pensam que enganam, escamoteando essa informação? As campanhas do tipo “diga não às drogas” só têm efeito sobre quem já não tinha a menor intenção de fumar; quem sempre achou feio, ridículo, perigoso, imoral. Então, para que servem?

Não é à toa que novela faz tanto sucesso no Brasil – as pessoas adoram viver em ilusão. Pensam que, excluindo o assunto do seu cardápio, estarão protegendo os filhos desse mal. Mas eles vão sair de casa, viajar, ir a festas, shows, fazer faculdade. Alguma hora, vão ver maconha. Vão querer experimentar? Talvez. Vão querer viver em função da maconha, chapados oito horas por dia? Se eu for mesmo o seu modelo, não…

Ainda não descobriram, o mundo todo, uma maneira de impedir as pessoas de querer experimentar substâncias entorpecentes (e de obtê-las de alguma forma). A lei não adianta nada. Quando aumenta a repressão sobre uma determinada droga, cresce a procura por outras – as sintetizadas em laboratório, de controle difícil, ou o uso indevido de remedinhos mil.

Os jovens fumam por muitos motivos diferentes: por curiosidade, por prazer, para confrontar os pais, para se fazer de “louco” ou se afirmar perante os amigos. Há os que fumam cada vez mais e os que começam “barbarizando” e depois cansam. Pode apostar que todos eles sabem que pode fazer mal, que é proibido e arriscado, mas não estão nem aí!

Alguém decidiria fumar maconha para ser “bem-sucedido e saudável”, ou seja, “certinho” como eu? Fala sério… Nessa idade, a vontade que a maioria tem é de se identificar com os “maus”, não os bonzinhos. Mesmo que boa parte da rebeldia e da “maldade” seja puro jogo de cena, pais e professores ficam apavorados, apelam para a repressão e aprofundam o abismo. É claro que há comportamentos inaceitáveis, mas o medo que os adultos têm dos jovens muitas vezes não se justifica.

A reação da TV Cultura diante de história toda foi do tipo: “O que os outros vão pensar de nós” – que é uma das mais hipócritas e covardes. Se eu só fumasse maconha, tudo bem, mas os outros não podiam saber disso. Vão pensar que toda a família Cultura não presta!

Isso me lembra um pouco a reação do pai que expulsa uma menina de casa quando ela engravida: “Vão pensar que minha filha é uma puta!” Se o pai tem amor e confiança, vai comprar uma briga com que a acusar disso, e não endossar a opinião errada dos outros.

Da mesma maneira, a Cultura poderia ter dito, publicamente, que confiava em mim, que meus programas não induziam ninguém a fazer bobagem, muito pelo contrário – que faziamos questão de dar informações corretas e promover debates honestos. Que a descriminação da maconha está em pauta há algum tempo, dividindo especialistas, e que muitos senhores (mais ou menos) respeitáveis já admitiram ter tido contato com a maconha. E que, embora a capa da revista pudesse dar uma impressão errada, eu não estava incentivando ninguém a fumar, de maneira alguma. Os pais e os jovens poderiam se assegurar disso.

Se o interesse da televisão fosse mesmo impedir que a minha mensagem causasse algum mal, insistiria nesse esclarecimento e brigaria ao meu lado contra a Época pelo mau uso da minha imagem. E assumiria a posição moderna, esclarecida (palavras de um renomado criminalista) de tentar tirar esse assunto da esfera policial. Em vez disso, seu comunicado me enquadrou e reforçou a idéia errada que alguém pudesse ter: “Essa garota é uma criminosa e quer levar meus filhos para o mau caminho”.

É lógico que a televisão tem uma tremenda influência sobre as pessoas. Mas isso não quer dizer que as garotas vão engravidar porque a Xuxa teve a Sasha… Acreditar em uma relação como essa é desconhecer muito os jovens (e esquecer a própria juventude).

Bom, agora que essa panela foi destampada, o negócio é continuar discutindo. O bom disso tudo é que o assunto entrou em pauta onde normalmente não entraria – dos programas matinais à mesa de jantar. Daqui a algum tempo, quem sabe, poderemos selar a paz. Acendendo ou não um cachimbo.

Soninha é jornalista.

Compartilhe :

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

Agenda Cultural

Agenda Esportiva

Escola do Legislativo lança podcast sobre os desafios do envelhecimento no Brasil

BOLETIM SEMANAL NÚMERO 103 – DE 1 A 7 DE NOVEMBRO DE 2024

Nesta sexta-feira tem show no Sesc Araraquara

CATEGORIAS