Vera Botta (*)
13 de maio: a abolição acorrentada
A marca oficial da abolição dos escravos, a assinatura, no mesmo dia, pelo presidente FHC de um decreto determinando, em 60 dias, uma cota mínima para a contratação de negros, mulheres e deficientes físicos no serviço público federal terceirizado e em cargos de confiança nos oferecem a possibilidade de repensar mitos, fatos, preconceitos e dissimulações ligados ao racismo no Brasil. E o preconceito existe? E o racismo, não só em relação ao negro, mas como instituição de poder e dominação não foi proibido constitucionalmente, perguntam outros.
De fato, a constituição de 1988 criminalizou o racismo. Ao fazê-lo, reconheceu a existência de desigualdades raciais. O Brasil não é mais a senzala sob a chibata da minoria, como bem disse Frei Beto, mas temos nas exclusões, nas repressões diretas ou escamoteadas, marcas concretas de discriminação racial. Segundo o IBGE e a PNAD, pretos e pardos são 40% da população, correspondendo a 60% dos pobres. Profissionais de nível superior afro-descendentes recebem somente 70% do que profissionais brancos nas mesmas funções. E o que dizer da pecha de povo ignorante, passivo, de condutores de cultura de valor menor, atributos impostos injustamente aos negros?
Apesar de distanciadas no tempo histórico, não se pode separar a luta dos escravos de ontem e a dos explorados de hoje, a chibata da senzala de ontem e a violência de hoje dos poderes e da sociedade contra a comunidade negra.
Não é de passividade a história dos negros.
Basta revisitar os quilombos, exemplo vivo da resistência negra. Palmares, símbolo da luta do movimento negro é, sem dúvidas, um divisor de águas entre a posição de algumas correntes políticas que recorrem a sua história e a Zumbi para justificar a entrada dos negros na história dos vencidos e um outro recorte que quebra o mito da docilidade e passividade da alma negra. E o faz, salientando a emergência de negras/negros como sujeitos políticos ativos que têm, sob várias portas de entrada, qualificado a história de organização do povo negro na luta pelos seus direitos.
Zumbi escolheu a guerrilha para conquistar a liberdade e tornou-se um símbolo. Sua vida não valia mais do que cem mil réis e um punhado de farinha de mandioca para o chefe da milícia armada contratado pela Coroa Portuguesa para matá-lo e destruir Palmares.
Porém, a utopia não tinha e não tem preço. Sua cabeça, espetada em um pau e exposta no lugar mais público de Recife sob a justificativa de satisfazer os ofendidos e assustar os negros que acreditavam ser Zumbi imortal foi disputada como troféu. O ato mutilador não eliminou a continuidade da resistência.
Zumbi não permanece no imaginário como passado enterrado e morto. Dignificar a resistência negra implica em assumir o compromisso de denunciar que o racismo no Brasil não é nada sutil. Está na família, nas escolas, no mercado de trabalho, na produção simbólica da sociedade. Está na cultura racista que busca introjetar idéias da inferioridade do negro.
Os esteriótipos do cabelo ruim, da maior aptidão dos negros para o trabalho pesado, a exposição, pela TV, de negros em funções discriminadas, a representação de suas habilidades associadas à capacidade física ou a uma sensualidade negativamente estigmatizada, “a cor do pecado” pesam fortemente na cultura.
Afinal, que democracia racial é essa defendida pela Constituição? Uma democracia de fachada, baseada em mitos e idealizações. É justamente um plano de lutas do movimento negro para a implantação de políticas afirmativas e inclusões dos afro-descendentes que queremos apoiar neste 13 de maio e em todos os outros dias do ano, em tributo a Zumbi, expressão viva e guerreira de nossos sonhos e utopias.
E em Araraquara, como caminhar?
A criação de um Centro de Referência da Cidadania, uma conquista importante, deve ser, de fato, o ponto de encontro das diferenças e unidades de um plano de lutas. Nossa Morada também tem seus símbolos de resistência. Desde Adolufã e Bambaná, os quais teriam, segundo registro oral, há cerca de 236 anos atrás, organizado o primeiro quilombo na região, passando por Damião do batuque, Benta Raquel, Benedito meu nego à batalha presente para a realização do Festival Comunitário Negro Zumbi – Feconezu, à todas as lutas pela valorização da consciência negra, caminhos vêm sendo trilhados, sonhos vêm sendo sonhados.
É hora de mais ação. Um fórum permanente de discussão sobre a questão racial em Araraquara foi votado em 13 de maio. O movimento hip hop, pela sua capacidade de organização, pela perspectiva ampliada de mobilizar jovens negros tem denunciado o racismo e a discriminação impostos pelo sistema à juventude negra, merece todo apoio institucional. Estamos, pois, em condições de implantar, viabilizando intersecções entre os grupos existentes no movimento negro, uma política de referência. Para a cidade. Para o Estado. Para o Brasil. Para podermos ter uma sociedade mais igualitária, “viver e não ter a vergonha de ser feliz”, como diz Gonzaguinha.
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A homenagem prestada na Câmara Municipal às 6 mulheres que têm marcado nossa história foi maravilhosa. Homenagens verdadeiras. Sem fachadas. A Imprensa, convidada, não compareceu. Pena! As pessoas que estiveram na Câmara, prestigiando – e foram muitas – saíram em estado de graça. E nós, também, pela sensação prazerosa de poder valorizar mulheres iluminadas. Valeu Olinda, Clara, Dulce, Haydée e Nazaré. E valeu muito Catarina, que nos deixou 3 dias após, mas que, com certeza, já se tornou uma estrela brilhante a iluminar nossos caminhos. São por pessoas como vocês que vale a pena continuar a lutar! Em um pacto de amor e de solidariedade maior.
Boa semana a todos. Até à próxima!
(*) É Coordenadora do Mestrado da Uniara e colaboradora do “JA”.