Dedico esta crônica ao meu querido filho
Dr. Flávio Guaracy da Silva Costa,
Especialista em Cirurgia Plástica,
que completou em dezembro 10 anos de formado.
Em 29 de novembro de 1992, aqui mesmo no Jota-A, escrevi uma crônica dedicada ao meu filho Flávio, que se estava formando em Medicina. Passaram-se 10 anos e estou muito feliz porque ele está exercendo sua profissão aqui em Araraquara e porque os clientes dele me têm procurado para dizer que gostam muito dele como Médico.
Quando o Flávio entrou para a Faculdade de Medicina, tive a oportunidade de lhe dizer que todo aquele que deseja ser um bom Médico deve ter, inicialmente, uma tendência ou queda para a profissão. Ao fazer o curso, disse-lhe eu, existem dezenas de matérias para serem estudadas, aprendidas e treinadas, mas duas delas se destacam: a Fisiologia e a Semiologia. Completei em tom de recomendação: "Quem estuda bem Fisiologia e Semiologia terá sempre facilidade para aprender todas as outras matérias e facilidade para exercer qualquer especialidade da Medicina."
FISIOLOGIA é a matéria médica que estuda o funcionamento de todos os órgãos, aparelhos e sistemas do corpo humano, desde os simples até aos maiores e mais complexos.
SEMIOLOGIA é a matéria médica através da qual o estudante aprende a juntar com sabedoria aquilo que ele vê no paciente com aquilo que consegue apurar na entrevista, ou seja, aquilo que o paciente conta ou refere. Na seqüência, o Médico irá interpretar, com meticulosidade, os exames que ele pedir por serem necessários e adequados a cada caso.
Em Semiologia, existe uma parte que é chamada SEMIÓTICA, na qual o Médico anota aquilo que ele VIU, ESCUTOU e CHEIROU no corpo do paciente. A outra parte é a SEMIOTÉCNICA, através da qual o Médico aprende a palpar, percutir, auscultar, tocar, pesquisar e também conduzir a conversa com o paciente, chamada ANAMNÉSE, na qual lhe é contado o início dos sintomas, como a doença evoluiu e qual o grau de melhora ou piora com as medidas já tomadas.
Aos que estranharam quando falei em CHEIRAR O PACIENTE, lembro aqui de algo que já contei aos leitores, de meus tempos de sextanista de medicina, trabalhando no pronto socorro do Hospital Souza Aguiar, no Rio de Janeiro. Ao chegar para meu plantão, às 20 horas de uma segunda-feira, percorri o corredor para chegar ao vestiário e passei em frente de um dos quartos onde estavam 4 pacientes esperando internação ou remoção. Senti, nessa hora, um cheiro igualzinho ao que a gente sente ao abrir uma caixa cheia de maçãs. Eu já sabia que tal cheiro é típico ao do hálito do diabético quando está com mais de 3 gramas de glicose por litro de seu sangue.
Entrei naquele quarto, cheirei a boca de um por um dos pacientes e logo achei o diabético, que estava ainda sem diagnóstico, quase entrando em coma.
No prontuário dele, estava escrito que era um caso suspeito de derrame. A pressão dele estava alta. Antes mesmo de me trocar, pedi um exame urgente, no qual constatei que a glicose no sangue dele estava alta, 422 mg por 100. Chamei o enfermeiro e mandei que ele aplicasse insulina cristalina na veia do paciente, o qual abriu os olhos e ficou em pé após poucos minutos.
Devo explicar o diagnóstico que fiz, o qual não teve nada de especial. Aconteceu que aquele cheiro de maçãs, que falei, já estava impregnado na memória do meu nariz desde minha infância. Quando eu era criança, dava uma escapada de casa e ia até a estação da estrada de ferro toda sexta-feira às 10 horas da manhã para esperar o trem que trazia algumas caixas de maçãs que eram importadas da Argentina e vinham embrulhadas, uma a uma, num papel amarelo sedoso. Quando os bagageiros abriam os caixotes com um pé-de-cabra, sempre acontecia de racharem alguma das maçãs, saindo aquele cheiro gostoso. Eu era um candidato constante para ganhar deles uma das maçãs rachadas, que eu comia gostosamente…
Em Semiologia, aprendemos ser importante prestar a atenção nos gestos que os pacientes fazem quando explicam suas doenças e nas palavras que eles usam de acordo com seus costumes, educação, regiões do país onde vivem e a língua falada pelos pais ou avós deles.
Eis uma palavra muito usada por pacientes de nossa região: FORMIGAMENTO, que é uma espécie de pinicação, comichão ou amortecimento em alguma parte do corpo. No canto esquerdo, estou pondo um conjunto de definições da palavra formigamento que aparece nos dicionários, sendo que "parestesia" quer dizer sensibilidade estranha na pele.
Alguns pacientes não dizem exatamente formigamento. Eles dizem que sentem umas formigas nas pernas, em casos de varizes. Pacientes com arteriosclerose dizem às vezes que sentem umas formigas nas pontas dos dedos das mãos e, estando distraídos, esfregam os dedos uns nos outros de forma semelhante à de representar dinheiro.
Um professor meu de Semiologia, na faculdade, contou na classe sobre uma paciente que procurou seu Médico queixando-se que perdia o sono porque sentia umas formigas por baixo. O médico lhe receitou um calmantezinho. Quinze dias depois, ela retornou e disse ao Doutor que, volta e meia, continuava sentindo umas formigas por baixo. O Médico lhe receitou um calmante que poderia ser mais adequado.
Não melhorando, recomendaram a ela que procurasse um Clínico Geral da cidade, que era bom de diagnóstico. Ouvindo a queixa dela, esse Médico lhe pediu um exame de urina, através do qual descobriu que a mulher era diabética. A urina dela era doce e o que ela sentia eram formigas mesmo…
Semiologia é assim, disse-nos o Professor, o Doutor precisa estar atento a todas as possibilidades, tanto de doenças, como de palavras…