João Baptista Galhardo
E se fosse verdade? Um município tinha apenas um cemitério. Já lotado, os mortos eram colocados em qualquer túmulo, empilhados uns sobre os outros. Sem o caixão, por economia de espaço. De sexos, famílias e idades diferentes, obrigava os falecidos à uma orgia infernal. Dada a natureza da área de situação, o Prefeito não conseguia autorização para a implantação do segundo campo santo. Teve, então, a idéia de propor a aprovação de uma lei de quatro artigos: 1º. Fica proibido morrer neste Município. 2º. Os munícipes deverão cuidar da saúde para não falecer. 3º. Os infratores responderão pelos seus atos. 4º. Esta lei vigorará até a construção de um novo cemitério, revogando-se as disposições em contrário. A lei entrou em vigor. Certo dia a Prefeitura recebe pelo disk denúncia a informação de que o Zicão, aposentado, conhecido pé de cana e chegado à vadiação extraconjugal, estava à beira da morte. Imediatamente compareceu o Auditor do Município com o distintivo no peito. Notifica o doente e sua família de que ele não pode morrer, sob as penas da lei. A sua mulher D. Cecília e seus dois filhos (um casal) ficaram apavorados. E agora?
– Vamos chamar os advogados doutor Marcelo e o doutor Gonzaga para nos orientar.
Chegam os dois. No quarto senta um de cada lado da cama do Zico, já aparentando concordata múltipla dos órgãos. Bem perto da falência. Presentes a esposa, os filhos e uma vizinha, D. Diacuí, neta de índios, que de vez em quando levava remédio caseiro para o doente. Era um preparado com vinho, catuaba, pó de guaraná, raizes de nó de cachorro e marapuãma. E ainda jurubeba, amendoim e guizo-de-cascavel. Começa a discussão entre os dois causídicos.
– Vamos entrar com um pedido de alvará judicial.
– Não vai dar certo, diz o Gonzaga. Alvará tem prazo. Não sabemos quando ele vai morrer.
– E uma ação declaratória? Para constatar a ocorrência de uma situação de fato, ou seja, que ele está doente e que vai morrer.
– Também não vai dar certo. Vai ter perícia. Demora.
– E mandado de segurança?
– Mas onde está o direito líquido e certo?.
– Ora, além do direito constitucional de viver e morrer com dignidade, trata-se de um Direito Divino. Natural.
– Está bem. Vamos fazer um pedido ao Prefeito para que ele autorize a morte sem qualquer punição.
Dias depois volta o Fiscal do Município.
– O pedido foi indeferido. Feita uma investigação constatou-se que há menos de uma semana o Zico esteve em pé, por três dias e três noites na fila para ser atendido no hospital público. Quem tem essa disposição não pode falar que precisa morrer. “A doença dele é uma fraude”, concluiu. Doente, porém lúcido. Quando alguém falava ele virava a cabeça para prestar atenção.
– E se fizermos um acordo com a Prefeitura. Ela autoriza a morte em troca dos órgãos para transplante. Aí d. Cecília, deu uma risadinha de deboche e despachou:
– 0 rim está podre. O coração entupido. Nos olhos a doença mais leve é catarata. Pâncreas não funciona. Fígado com cirrose. Pulmão preto de cigarro.
O doutor Marcelo, gozador: – nem os órgãos genitais?
– Só se aproveitar para enxerto de pele, acrescenta maldosamente a esposa, deixando indignado o marido.
– Vamos chamar o colega doutor Juca.
Criminalista famoso. Tinhoso. Setentão bem passado.
– Talvez a questão seja criminal.
Ele chega e se reúne com os colegas e a família, no quarto ao lado da cama do pré defunto. Enquanto Diacuí dava o remédio caseiro de colherada ao Zico, o doutor deu seu parecer.
– Fiquem sossegados. A lei é inconstitucional. Além do que não estipula qual é a pena. Não há pena sem lei que a defina. E ainda. Se ele morrer nada acontecerá para a família. A punição não pode passar do infrator.
E todo orgulhoso acrescentou:
– E mesmo que houvesse pena estipulada, ela desapareceria com a morte do agente. E esnobou com um latinório: morte crimina exstinguuntur.
Aliviados voltaram todos para a sala. Ficou no quarto o criminalista interessado na receita da garrafada que Diacuí estava dando para o paciente. De repente ouve-se gritos da índia: “Socorro o homem morreu. O homem morreu”.
Correram todos para o quarto e pregaram o olho no Zicão, que estava assustado e com a cabeça erguida. O doutor Juca, sentado na cadeira, com as duas mãos sobre sua pasta, mortinho. Fulminado por infarto faleceu em segundos. Zicão com o remédio da índia recuperou a saúde. Triste com o que ouvira dos familiares a seu respeito, saiu de casa. Tirou a Maria Maconha da zona, sua velha conhecida e com ela viveu feliz por muitos anos. Quando morreu já não vigorava a lei que enchia o saco dos moribundos.