Pelo retorno do rabo

Léo Rosa de Andrade (*)

Por séculos, o corpo foi extensão sagrada. Por se acreditá-lo criação divina, investigá-lo seria profanação. Era imprudente, então, fazer dissecação, trabalhar o cadáver, para conhecer anatomia etc. A medicina era limitada. Aliás, as próprias doenças eram vistas como vontade da divindade; orações seriam o melhor remédio. Religiosos coerentes criam e creem nisso.

Veio o Renascimento e ressurgiu o interesse pela natureza. Aliás, anoto, Tomás de Aquino (1225-1274), respeitado pelas autoridades religiosas como um dos sábios da igreja católica, já propusera a separação entre o natural e o sobrenatural. Seria um bom argumento para dissecar defuntos: eram pura natureza. A tese, todavia, embora Aquino, não se realizou.

Quem conseguiu estabelecer o argumento foi René Descartes (1596-1650), e o fez com ousadia: separou as substâncias, ou coisas, em: res cogitans (espírito), res divina (deus), res extensa (matéria). O arrojado de sua propositura foi colocar o deus cristão como segunda coisa e, ademais, tirar-lhe a condição de certeza que o pensamento medieval lhe dava.

Para Descartes, só não havia dúvida no cogito ergo sum (penso logo sou/existo). Que eu penso, é certo. Que existe uma divindade, já isso caiu no crivo do absolutismo cético que o filósofo exercitava em relação a qualquer crença ou convicção; as suas, inclusive (ceticismo metódico). A audácia fundou a Era Moderna – o tempo da investigação científica.

O corpo está distinto do pensamento (registro: desde Bento Espinosa (1632-1677) entendemo-nos como coisa única: um corpo que pensa). Efeito prático: nossos restos mortais passaram a ser objeto de estudos. Examinava-se com método e minudência a condição física humana. O que Leonardo da Vinci (1452-1519) fazia em segredo agora se faria em escolas.

Desde então, progressos. Mais para o nosso tempo, descobriu-se o gene, desenvolveram-se pesquisas. Chegou-se à engenharia genética. Alteraram-se coisas na natureza, como a soja, modificando-se sua composição genética. Reações diversas e iradas. Clonaram-se animais, ou seja, possibilitou-se que um ser visse nascer outro de si mesmo, sem cruzamento.

Oposição conservadora; o homem brincava de “criador”. Agora, a vida sintética, com organismos sendo criados em laboratório, e capazes de se reproduzir. Invasão alarmante do espaço de deus cristão; um cientista concorrendo com “sua” obra. Façanha científica com consequências de muitas ordens. Repercussão na vida cotidiana, implicações ideológicas e morais.

Em tese, depois de feito em uma bactéria, são possíveis “mudanças em um genoma inteiro de um organismo, podemos adicionar novas funções, eliminar aquelas que não queremos e criar uma nova gama de organismos industriais que coloca todo o esforço deles naquilo que nós queremos que eles façam” (DC, 22mai10). Declaração de Craig Venter, autor do “milagre”.

No Brasil, na Universidade de Campinas, Gonçalo Pereira chefia um grupo de cientistas que projeta outras formas de vida. “O objetivo da equipe prevê a criação de organismos sob medida para realizar tarefas industriais, médicas ou agrícolas, por exemplo” (FSP, 23mai10). São notícias que aniversariam mais de duas décadas; deve haver resultados na praça.

Essas criaturas de laboratório, programadas para não ultrapassar dados limites e condições, estão destinadas a ser postas a serviço dos interesses humanos, poupando-os do estafante ou desagradável. A recém-fabricada é simples, um organismo unicelular, e levará algum tempo até que se estruture um novo ser multicelular, como um cachorro ou um humano.

O nome científico geral de tudo isso é Genômica, especialidade que tem dominado a ciência do século 21, e que se volta aos códigos da vida, qualquer vida. O que se se obteve foi a total recombinação dos genes de um organismo, criando um totalmente novo. O assunto me interessa: o humano diante das possibilidades humanas de lidar com o humano.

Fora da tradição cristã, portando à parte dos tabus ideológicos que o Ocidente reserva ao estado de humanidade, os chineses adiantam-se: já em 2002 “uma equipe de pesquisadores chineses coordenada pela médica Lu Guangxiu teria clonado dezenas de embriões humanos e extraído deles células-tronco, de grande potencial terapêutico” (https://bityli.com/bclvU).

Depois, em 2018, “pesquisador chinês alega ter dado um passo inédito na ciência mundial: a criação dos primeiros bebês geneticamente modificados. He Jiankui diz ter alterado o DNA de gêmeas. Se for verdade, o feito, além de um grande salto para a ciência, seria também paradigmático no que tange à ética” (https://bityli.com/D5qwQ). Com prudência, sou a favor.

Acompanho, curioso e fascinado, notícias sobre transgenia, recombinação materiais genéticos (DNA) de seres existentes. “A partir de avanços tecnológicos, a genômica tem gerado informações que recebem destaques na grande mídia, gerando dúvidas sobre o que ainda será descoberto e como se descortinará a vida no futuro” (https://bityli.com/zbqfb).

As descobertas são variadas. Existem pesquisas relacionadas à saúde, alimentação, extinção de espécies etc. Em 2012 esteve no noticiário um rato que recebeu um gene de uma anêmona. O roedor tornou-se bioluminescente, parecendo estar aceso (https://bityli.com/VxROF). Já fizeram ratos inteligentes, reverteram Síndrome de Down e Doença de Parkinson.

Quanto o\as humano\as somos 46 cromossomos e mais ou menos 30 mil genes, e a ciência genética, a partir de suas descobertas, desenvolveu a biotecnologia, a engenharia genética, a clonagem, os produtos transgênicos, a hibridização, o uso terapêutico de células-tronco etc. Melhorou a natureza, sobretudo, desenvolveu melhores alimentos para nos suprir.

Ademais, “nos últimos anos, também se descobriu que algumas doenças humanas são provocadas por deficiências genéticas. […] Novas técnicas de biologia molecular possibilitaram a criação de medicamentos mais eficazes, bem como a otimização dos métodos de diagnóstico e tratamento de várias doenças” Cristina F. B. Seixas (https://bitlybr.com/tMa).

Enfim, a genética, a transgenia notadamente, atiça-me a imaginação: sempre desejamos voar; não somos dotados de asas. O morcego, mamífero como nós, o é. Toma-se-lhe o gene-chave da asa e se o insere em um primata. Algumas experiências depois, dará certo. Então, se um humano quiser, é só comprar um genezinho, que no futuro será vendido nas farmácias, e voará.

Quero essas asas. E cobiço mais: o gene que dá longevidade aos tubarões (você sabia?, há bichos que vivem para sempre). E aspiro a outros, mas desejo muito, para minha diversão, o gene que dá o rabo do macaco. Fico fantasiando que, entre lençóis, um rabo desses terá muita função. Bem, examine o assunto, imagine a sua própria situação.

(*) É Doutor em Direito pela UFSC, Psicanalista e Jornalista.

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