Rosa Godoy (*)
– É assim, este desenho é o meu sonho. Eu aposentada, numa casa bem grande, com quintal… varrendo o quintal. Parece que estou me vendo… às vezes varrendo, às vezes apoiada na vassoura, olhando prá cima, meditando. Achando que a vida é boa e que eu sou feliz… Este desenho sou eu sendo feliz.
Conforme falava, seu rosto ia se iluminando. Aliás, jamais imaginei que falasse tanto, pois nas poucas vezes que nos encontramos, mal tínhamos nos cumprimentado. A correria do dia a dia não raro nos impede de conhecer as pessoas para além do “bom dia”, “boa noite”. “Tudo bem” já extrapola o limite da possibilidade relacional. Até o sorriso parece fixar-se no rosto ficando à espreita, atrás da boca, pronto para entrar em ação quando acionado. Uma lástima, poder-se-ia concluir…
O cenário era uma reflexão sobre o papel da mulher na sociedade hoje. Participavam trabalhadoras de uma escola, às quais havia sido pedido que fizessem uma pintura para retratar o que cada uma achava do tema. Seguir-se-ia uma discussão em grupo e o produto final retrataria a construção coletiva do conhecimento sobre a questão.
Dete foi uma das últimas a falar e destoou do grupo logo de cara. O quadro que havia feito era muito simples. Começou justificando que se não sabia desenhar, pintar, então, nem se atreveria (havia feito só para não ser chata com o grupo), era a primeira vez que pegava num pincel. Sobre a folha branca, repousavam apenas três figuras primitivistas: uma casinha (destas que qualquer criança sabe fazer), um bonequinho (com muita boa vontade, se via tratar-se de uma mulher) e uma vassoura. A pobreza das formas, no entanto, contrastava com a riqueza do seu significado. A narrativa foi longa e detalhada, entremada de expressões peculiares de alguém que está de bem com a vida.
Mãe zelosa, sempre havia se dedicado à família, ou melhor, aos 4 filhos.
– Nunca deixei nem na creche. Tinha ciúmes, achava que ninguém podia cuidar deles melhor que eu. Ensinei tudo a eles, a cuidar um do outro, a cozinhar, a se virar sozinhos. Eu tinha ciúmes de tudo, até do sabão em pó que eu sabia que ninguém ia usar direito. Como ia deixar meus filhos? Hoje estou sossegada, o mais velho, de 10 anos já sabe até fritar bife. Cuida dos irmãos para eu trabalhar…
Até aí, o sonho não encaixava. Provoquei: – Me diga uma coisa, e o que tem a vassoura a ver com isto?
Começou lá atrás, no nascimento dos filhos. Foram vindo, pertinho um do outro e ela cuidando de tudo. Sozinha. Lavava, cozinhava, corria de lá para cá o dia todo. Não tinha descanso nem para o trivial. Às vezes ficava tão nervosa com a choradeira das crianças que começava também a gritar que nem maluca. Era uma loucura e sempre tudo com ela, só com ela…
E o marido, não tem marido aí, onde está ele?, continuei a provocação.
– Claro que tem, quando não está trabalhando, o maridão está bem espichado no sofá, dormindo. E ainda reclamando de cansaço. Homem é tudo assim!
Com a vinda dos filhos, fechou-se para o mundo. Nada mais importava…
– Amor de mãe ocupa muito espaço, sabe? Não dá prá mais nada… Só comecei a viver novamente quando resolvi sair prá trabalhar. Agora me acho o máximo, estou bonita de novo, me arrumo, me acho… Mulher é que nem flor, se não regar, murcha! Hoje sou apaixonada por mim, me sinto realizada. Quando estou aqui na Escola, fazendo a limpeza, sei que estou fazendo o meu dever, a minha obrigação. E tento fazer isto com amor, com muito amor. A vassoura? Já explico: agora só falta eles crescerem, irem para o mundo. Porque a gente não cria os filhos prá gente, cria para o mundo. A gente trabalha, se mata e cria eles para o mundo. Por isto que no final de tudo quero me ver aposentada, com o dever cumprido… Lá estou eu apoiada na vassoura, varrendo aquele quintal bem grande e meditando…
Não se ouvia um pio na sala, exceto quando ela nos levava às risadas. O assunto era sério, todas sabíamos! Naquela fala, viam-se todas as demais mulheres – nas dificuldades de lidar com o dia a dia extremamente trabalhoso da dona de casa; no ônus e no bônus da maternidade; na sensação de liberdade provocada pela autonomia financeira conquistada através do trabalho extra-doméstico remunerado; no descaso do marido para com as tarefas do lar, naturalizadas femininas e, finalmente, na esperança do final feliz, embora apoiada no símbolo da subalternidade, a vassoura, agora vista como elemento de superação, uma vez que o trabalho – o mesmo de antes (talvez o que mais ela conheça, por isto representado na pintura) – é opcional e não obrigatório.
Ao final, espontâneamente, todas aplaudiram. Com uma simplicidade ímpar, ela havia sintetizado o que todas disseram. Para completar, mostrou timidamente a primeira pintura que havia feito – uma flor, ela mesma e todas as mulheres. Obrigada Dete, por todas as flores com que nos presenteou na sua fala.
Antes de encerrar, porém, não resisti.
– E o marido, está no sonho?
– Sim, claro que está, bem espichado no sofá!
(*) É enfermeira e colaboradora do J.A.