Rosa Godoy (*)
Não, não e não… Já disse que não vou autorizar a doação do aparelho para a sua filha. Por que, ao invés de comprar tudo isto você não comprou o aparelho?
O fiscal foi enfático. De nada adiantaram as lamentações da mulher, o pedido de complacência dos vizinhos, os lamentos da criança que não estava entendendo nada do que diziam, mas muito do que transmitiam os gestos nervosos. Até o entregador da loja tinha tentado sensibilizá-lo. A moça é pobre, só comprou porque estava na liquidação. Que nada!
Jéssica entrou desolada em casa e sentou-se no sofá ainda recoberto pelo plástico da loja. Azar, puro azar o que lhe havia acontecido. Por que o sofá teve que chegar bem na hora que o homem tinha ido conferir os dados do atestado de pobreza? Havia feito tanto malabarismo para comprar aquele sofá que nem acreditava que ele pudesse ser causa de tanta desgraça. E agora, o que fazer? Como conseguir o aparelho de surdez para a filha? A assistente social tinha garantido, só tinha que comprovar que era pobre, que não podia pagar. Como voltar à clínica? A cabeça zoava, mas mesmo assim conseguiu fazer um retrospecto da situação.
Sempre achou a filha estranha, mas nunca havia lhe passado pela cabeça que ela não escutava. No terceiro ano de vida, recebeu a notícia, em meio à bronca do pediatra: Mãe, como é que a senhora não percebeu que a sua filha não escuta? Mas, doutor, eu nunca tive filhos antes, achava que ela era normal… Com esta dificuldade toda, ainda bem que só tem ela, não é mesmo? Vai ter que usar aparelho pro resto da vida.
O pediatra do convênio era o mesmo que atendia a criança desde o nascimento.
Assim que soube o diagnóstico Jairo, o pai, ficou tão arrasado que não teve outro jeito senão ir embora, coitado. Sabe como é, não consigo suportar o fato da minha filha, sangue do meu sangue, ser surda como uma porta, tenho que ir para um lugar onde possa esquecer, você é forte, eu não, me perdoe…
Ainda se lembra dele se afastando, sem olhar para trás. Durante seis meses ajudou nas despesas da casa, depois, nunca mais. Vida nova, família nova, a Dininha já tem dois filhos e queremos mais. A despesa aumentou, não dá mais… Ainda bem que não somos casados, senão não ia agüentar sustentar você e a menina, além da minha família…
E o sofá? Ah… o sofá! Depois que ele se foi, as coisas ficaram difíceis. Teve que mudar para um cômodo, na rua de baixo, de aluguel mais barato. Veio a chuva, levou tudo, inclusive o sofá onde dormiam, onde ninava a filha vendo TV. Tinha que comprar outro, nem que para isto tivesse que trabalhar a vida inteira. Foi quando viu o anúncio: Liquidação leva o sofá e ganha o tapete e a mesinha. Tudo só 350,00, em treze prestações de 45,00. Estava trabalhando, animou-se, fez a dívida, comprou. Deu no que deu…
Pensativa, nem reparou que o homem tinha deixado o portãozinho aberto. Só ouviu a brecada do caminhão e os gritos do motorista: Onde está a mãe que não toma conta desta menina? O homem babava, o cheiro de álcool, inconfundível.
O médico que atendeu a garota no Pronto Socorro era o mesmo pediatra do convênio. Ela o reconheceu assim que entrou com a filha desmaiada nos braços. Como é que deixa uma menininha deste tamanho ir sozinha para a rua? Que judiação!
Chegou tarde, não teve o que fazer…
(*) É enfermeira e colaboradora do JA.