Quando eu era criança, ter dor de garganta era um sufoco. Os antibióticos ainda não haviam sido descobertos (ou inventados) e as pastilhas vinham meladas, de forma que a gente acabava engolindo pedaços de papel.
Em casa, Mamãe resolvia muito bem minhas dores de garganta e os estreptocócos eram rapidamente banidos. Com que? Com um remédio
popularíssimo na época, chamado AZUL DE METILENO.
O povão da época, final dos anos trinta e começo dos quarenta, acreditava piamente que umas pinceladas desse remédio na goela da gente eram um porrete para matar todos os micróbios da boca, evitar a estomatite, a amigdalite, a faringite e também as aftas.
Eu tinha que estar sempre evitando dizer que estava com dor de garganta para evitar as pinceladas de azul de metileno, mas Mamãe não passava batida diante de meus sintomas.
O pior de tudo, eu vou escrever aqui, mas se alguém mexer comigo na rua ou lá no 22 por causa disto, vou xingar. Sabe com o que minha Mãe me pincelava a garganta: com uma pena de asa de galinha, da qual ela arrancava quase todas as penugens, deixando apenas as da ponta, de modo que ficava um talo comprido, para me alcançar até as cordas vocais… Ela molhava aquela ponta no vidro de azul de metileno, abaixava minha língua com o cabo da colher e vápt!
Sabiamente, ao me fazer tal aplicação, ela me levava lá no quintal para evitar que a golfada que eu dava sujasse o ladrilho da casa, devido ao amargo e ao nojo da pena da galinha!
Em minha vida toda, até hoje, jamais encontrei algo mais amargo que esse tal de Azul de Metileno. Depois aprendi no ginásio que o danado era extraído do breu, que sai do carvão mineral. Era um remédio desgraçado, e a pena da galinha também!
Eu costumava folhear na época o famoso Almanaque Capyvarol por causa das interessantes Cartas Enigmáticas e acabei lendo nele um artigo sobre estreptococos, que eram micróbios perigosíssimos que, da garganta, podiam provocar reumatismo infantil e que, nos ferimentos da perna, podiam provocar
a tal erisipela.
Tempos depois, minha mãe bateu a perna num ferro e teve uma erisipela na
perna esquerda. Nossa vizinha de cerca disse prá ela que “zepela só sara com binzimento!”, o farmacêutico receitou prá ela banhos com permanganato, o Médico da EFA receitou Sulfadiazina e eu, prontinho prá me vingar, falei prá ela pegar aquela pena de galinha e passar azul de metileno na perna… Ela me engambelou e optou pelo uso do permanganato e da sulfa.
Não consegui escapar do azul de metileno, pois o famoso Dr. Ivo Pitanguy, lá
no Rio de Janeiro, me ensinou a marcar os cortes de Cirurgia Plástica molhando um palito esterilizado no popular corante. Usei-o a vida inteira e agora vejo meu filho também usá-lo, o Dr. Flávio, um ótimo Cirurgião Plástico aqui em Araraquara.
Há muitos anos, fiquei com uma tremenda ardência na uretra depois de ter chupado um excesso de abacaxis numa chácara lá em Duque de Caxias.
Procurei um Urologista, lá no Rio e ele me receitou um remédio que eu ainda não conhecia, chamado Mictasol, avisando que minha urina iria sair totalmente azul. Tomei e foi um espetáculo! Eram drágeas a base de azul de metileno, cuja eliminação pela urina a torna totalmente azul, azul byk!
Passa o tempo, já estando aqui em Araraquara, fui passar uns dias em Campos do Jordão e fiz a mesma proeza de chupar vários pedaços de abacaxi. Na véspera de retornar, senti a mesma ardência urinária e comprei as drágeas de Mictasol, que eram vendidas em tubos de lata, com rosca (né, Samuel, do Laboratório Millet Roux, origem francesa portanto!). Tomei o danado do remédio e viajei de volta numa segunda-feira bem de madrugada.
Preciso explicar uma coisa engraçada da biologia: Nosso canal de saída da urina tem duas válvulas de segurança que impedem da gente andar pingando urina pelo caminho. São músculos em forma de anel, chamados esfíncteres. Um deles, a gente abre quando quer e o outro se abre automaticamente. Por causa disto, é comum que os homens, se estiverem encabulados, não conseguirem, muitas vezes, urinar nos banheiros públicos, perto dos outros. A vergonha ou o nervosismo faz com que a bandida da válvula não se abra e as vezes ele bota o pipi prá dentro da calça sem urinar. Da mesma forma, se o homem se assustar, a válvula pode fechar antes da hora, cortando o játo da urina.
Pois bem, eu saí de Campos do Jordão de madrugada e, quando eram cerca de 6 horas da manhã eu já estava na Rodovia Anhanguera e parei num posto à beira da estrada para urinar. Fui direto pro mictório, onde havia uma canaleta de azulejo branco para mijação coletiva. Eu me posicionei na cabeceira da canaleta e me preparei para urinar na exata hora em que entrou um cavalheiro de seus 50 anos com o mesmo objetivo, o qual se posicionou na parte mais baixa da canaleta e começou a espremer para conseguir que a urina dele saísse.
A minha saiu antes, totalmente azul e foi descendo. Ao ver aquele azulão descendo, percebi que ele se assustou. Pelo rabo dos olhos, percebi que a mente dele bloqueou, a válvula dele não se abriu e ele saiu discretamente do banheiro sem conseguir urinar.
Quilômetros depois, já na Washington Luiz, parei num outro posto para tomar um pingado. Ao entrar, topei com o mesmo cara que ia saindo do banheiro.
Reconhecendo-me, ele me falou que já havia ouvido falar em sangue azul, mas em mijo azul era a primeira vez…
Para terminar, vou contar mais uma: Quando fiz residência médica no Rio de Janeiro, fui fazer um estágio num hospital psiquiátrico localizado no Bairro do Grajaú, denominado Casa de Saúde Bom Pastor. Meu plantão era as quintas-feiras, das 20 às 8 horas do dia seguinte, e o Médico titular se chamava
Dr. Leon Izaaks, com quem aprendi preciosidades.
Determinada noite, ali pelas 22 horas, foi trazido por familiares um homem de cerca de quarenta e poucos anos que havia perdido a fala. O Dr. Leon o examinou e percebeu que se tratava de um ataque de histeria semelhante àqueles que aparecem no famoso filme “Freud além da alma”. Olhando prá mim para testar se eu estava atento, ele abriu o armário dele, pegou três cápsulas daquelas brancas tipo casquinha de sorvete, mandou o cara engoli-las e não tomar água nem refrigerantes até ao dia seguinte, nem ir ao banheiro, devendo retornar no dia seguinte exatamente às 7 horas da manhã para fazer novo exame, porque se tratava de um caso muito perigoso e que, se a urina dele não ficasse azul, ele estava frito!
O paciente engoliu e se foi, enquanto o Dr. Leon me explicou que as cápsulas continham apenas pó de azul de metileno…
Um pouco antes das 7 horas da manhã do dia seguinte, o porteiro da Casa da Saúde abriu o portão e nós fomos surpreendidos pelo paciente da véspera, que entrou correndo e gritando animadamente: “Doutor, eu sarei, mijei azul!…”.