João Baptista Galhardo (*)
“Se vocês não me derem mais prazo para pagar esse cheque sem fundos e me protestarem, cometerei suicídio. Estou na estação. Vou me jogar na frente do trem”.
Era o telefonema de um devedor para o Cartório de Protestos, dizendo que sendo da alta-roda, não ficaria vivo para suportar o vexame e a desonra de ter um título protestado. O Escrevente que atendeu, muito gozador, lhe disse: _ já que você é grã-fino aproveite o trem das dez e oito para São Paulo que é o único de luxo. Não se mate sob uma locomotiva brega e jeca, como a que vai para Dobrada, Santa Ernestina, Catiguá ou Santa Fé do Sul. Há meio século atrás, havia na cidade duas classes sociais. A rica e a pobre. Nesta se encontravam os mais pobres e os menos pobres. Eram considerados ricos os que tinham fazenda, comércio, indústria, casa própria, os altos funcionários públicos (os marajás), algumas Autoridades, os que trabalhavam no Banco do Brasil ou na administração da Estrada de Ferro e alguns profissionais liberais. E entre os ricos se encontravam, também, os de fachada, de mera ostentação. Os genéricos de rico. As mães orientavam as filhas para namorar só quem fosse sócio do Clube Araraquarense. E isto implicava em fazer parte do seu quadro social. Certa vez, com quinze anos de idade estava conversando com uma menina, que não era namorada, mas a mãe pensando que sim, abordou-me: – você é filho de quem? Respondi: – do Paco e da Catarina. O que faz o seu pai? – é eletricista e minha mãe “de prendas domésticas”. Você é sócio do Araraquarense? – Não. Sou da Ferroviária. Foi o suficiente para levar a filha pelos braços a passos largos para casa. Já havia percebido que só pela grife da minha roupa não havia agradado: Calça da loja “O Pobre Elegante”, camisa do Brechó “Vem Q Serve” e sapatos da D. Virginia, todos do Bairro do Carmo. Se eu estivesse de roupa branca, com uma raquete embaixo do braço, insinuando jogar no “Tênis Clube”, como era conhecida a sede de campo, não haveria qualquer pergunta. Não me avexei. Não se tratava de namoro, como a mãe imaginara. Segui as duas pela curiosidade de saber onde moravam. Quando entraram, constatei que a casa era minha velha conhecida, pois ali muitas vezes havia entregado, de bicicleta, intimação do Cartório de Protesto, onde trabalhava como auxiliar. De imediato identifiquei o pai da garota. Um useiro e vezeiro em comprar. E da mesma forma em não pagar. Freqüentava com a mesma assiduidade tanto o Clube como o Ofício de Protestos. Era só ostentação, alarde. Como dizia meu pai: “comia mortadela e arrotava peru”.
Numa outra oportunidade, num baile de formatura convidei essa mocinha para dançar. De imediato, seu irmão, uma esponja de cachaça, entrou no salão e a retirou segurando-a pelo braço: – outra vez com esse pé rapado? Você tem que namorar aquele ali e apontou para um bem mais velho que girava no dedo indicador da mão direita as chaves de um carro. Sendo da elite, não importava a idade, se era feio ou portador de eventuais vícios. Bastava ter aparência de rico.
Durante o ano, dois grandes eventos sociais sacudiam os nobres da cidade, onde algumas mães liberavam total, soltando as rédeas das filhas. Um era o baile de São Pedro que o Clube realizava no mês de julho, freqüentado tão somente por sócios. As donzelas tinham a convicção de que qualquer namoro ali iniciado seria bem visto pelos pais. E outro na primavera, quando acontecia o baile das debutantes. Chique no último. Claro que eram exceções, mas muitos pais faziam questão da debutação das filhas como status para se arrumar o chamado bom partido. Os participantes faziam fila fora do clube antes do ingresso no salão de baile. Cada casal- a debutante e acompanhante- era anunciado individualmente. A plebe enchia a praça de frente da sede social para admirar e julgar os trajes femininos e masculinos. Os pobres, “jurados” do lado de fora, davam nota para as vestimentas, sem saber, até mesmo porque não lhes interessava, que muitos daqueles trajes eram emprestados ou alugados em cidades vizinhas. E que algumas costureiras não iriam receber pelo serviço prestado. Volto a dizer, como auxiliar de Protestos, sabia que eram exceções, não a regra. Só os falsos ricos, como os pais daquela gracinha que a mãe pensou que era minha namorada. Naquele tempo, quem não era soçaite, era ralé, gentalha, patuléia. A verdade é que na época nenhuma “riquinha”, mesmo disfarçada e de araque, namoraria um freqüentador das piscinas da ferroviária. Tudo isso faz lembrar a história da jovem de quinze anos de idade que comunicou aos pais que estava grávida. Eles não agüentaram. Agrediram a filha, física e moralmente: – Você não presta. Não vamos criar bastardo algum. Por certo nem sabe quem é o pai. Vai tomar chá de bucha verde com arruda para abortar. Essa criança não pode nascer de jeito algum, etc… Dias depois pára na frente da casa uma limusine. O motorista abre a porta de trás. Desce um senhor beirando setenta anos de idade, bem trajado, cabelos brancos. Apresenta-se aos pais da gestante e diz : – eu sou o responsável pela gravidez. Vou assumir essa paternidade. Se nascer homem vou passar para o seu nome umas três fazendas e se for mulher, transmitirei a ela algumas fábricas e lojas. E vocês como avós irão administrar. Agora vamos torcer para que ela não aborte. Nesse momento os pais da grávida, se benzeram com o sinal da cruz, dizendo numa só voz: – pelo amor de Deus, vira essa boca pra lá. Mas se abortar, por favor, o senhor a engravida de novo?