No domingo passado, escrevi uma crônica falando dos exames que são pedidos após as consultas médicas. Comparei as consultas de hoje com os exames clínicos feitos antigamente. Assim que o Jornal de Araraquara veio a lume, recebi um telefonema interessante da senhora Idalina, uma simpática e habitual leitora que goza da saúde e do prazer de estar vivendo na mesma idade em que estou. Ela me disse exatamente isto: “Doutor Guaracy, a matéria de hoje está incrível prá mim, pela coincidência; incrível, porque na quarta-feira passei em consulta com meu Médico; eu disse prá ele que somente gostava dos “Médicos estilo trinta e três”; abri o Jota-A de hoje e o senhor escreveu exatamente sobre isto; achei o máximo!”
Ela completou dizendo que não gosta quando o médico lhe pede exames, porque parece que ele não tem certeza do diagnóstico. E ela gosta da consulta na qual o Médico faz palpação, percussão, ausculta e, quando chega nos pulmões, mandando que ela fale o nº 33 várias vezes.
Dona Idalina me fez interessantes e pitorescos comentários, que apreciei muito. Ao desligarmos, acabei mergulhando no tempo e me vi, no ano de 1956, terceiro ano de Medicina, aprendendo Semiologia nas enfermarias da Santa Casa do Rio de Janeiro. Semiologia, como já comentei neste espaço, é a matéria médica na qual o estudante aprende a examinar um paciente, havendo várias abordagens:
Ectoscopia é a olhada geral no corpo do paciente, estando ele parado ou andando, sentado, em pé ou deitado, gesticulando, falando, fazendo mímica, etc.
A palpação é feita com uma ou duas mãos, sendo também válido o gesto de beliscar de leve, que se aplica, por exemplo, na palpação dos lábios.
A percussão é aquele exame de “martelar” o dedo médio direito sobre o esquerdo colocado geralmente sobre o tórax ou abdome. O som obtido oferece várias deduções. O Médico que domina bem esse exame é capaz de determinar, com precisão, o tamanho do coração, do fígado, do baço, etc., ou se o pulmão apresenta macicez em virtude de um derrame ou uma pneumonia.
Toque é a introdução de um ou dois dedos nos buracos do corpo. Ele pode ser feito no reto, na vagina, na boca, no canal do ouvido, nos olhos, no umbigo e também na pesquisa de hérnias.
A ausculta é um exame sensacional, aplicando o ouvido no corpo ou usando um canudo ou o estetoscópio para amplificar o som do coração, dos pulmões, do estômago, dos intestinos, etc. Também se usa na cabeça, nas hérnias, nas suspeitas de aneurismas e no útero das gestantes.
Numa prova de Semiologia, no mencionado ano de 1956, o Professor me mandou auscultar os pulmões de uma paciente da enfermaria. Disfarçando o nervosismo, forrei as costas dela com um pano bem fino e apliquei meu ouvido esquerdo fazendo uma pose bem teatral, fingindo estar totalmente seguro do que estava fazendo.
Fui auscultando de um lado e do outro, mandando que ela respirasse fundo sem fungar ou fazer barulho na boca. De um lado e do outro, descendo e, na empolgação da pose, ultrapassei o limite do diafragma, que fica um pouco acima da cintura. O Professor me interpelou: “Doutor, nesse nível não existe mais pulmões, quero saber que som você pretende ouvir aí nos rins da moça?” Não deixei por menos e respondi no ato: “Ora professor, estou ouvindo o plic-plic das gotas de urina que estão fluindo dos glomérulos renais para as alças de Henle…”. Ele achou graça da minha saída e sorriu. Eu aproveitei o lance dizendo: “Pelo seu sorriso, acho que o Senhor vai me dar dez!” Ele retrucou: “Como você chegou nos rins, eu dou dez prá você se me disser a quantidade de urina que se manda pro laboratório para verificar se os rins estão funcionando normalmente.” Respondi no ato: “A gente manda toda a urina das 24 horas, com a primeira urina da manhã num vidrinho separado.” Ganhei o cobiçado 10.
O exame clínico clássico dos pulmões inclui a ausculta mediante a repetição verbal do número 33, várias vezes seguidas, enquanto o Médico põe o estetoscópio, os ouvidos ou a mão espalmada sobre vários pontos do tórax. Para quem não sabe o por quê, vou explicar. Os pulmões, com ar dentro, fazem o mesmo papel do bojo de um violão. Eles modulam o som da nossa voz, como uma caixa acústica ou caixa de ressonância. Se houver uma doença ou um defeito qualquer nos pulmões, a ressonância da voz fica prejudicada. A idéia inicial do antigo clínico era pedir ao paciente que falasse três sílabas bem sonoras seguidamente para ver se a vibração saía limpa pelas costas ou se saía defeituosa. Um Professor de Medicina, em pleno Século XVIII, concluiu que as sílabas tri-trê-trê são ótimas, porque t junto com r dão vibração e harmonia, permitindo boa avaliação pulmonar. Os discípulos dele aprovaram tais sons, mas a maioria dos clientes entendia que era para dizer o nº 33. O resultado é semelhante e acabou ficando o 33 na moda até hoje.
Logo que cheguei a Araraquara, em 1961, fui morar na Av. 34 (Frei Luiz Sant’Anna) e, todo empolgado, mandei colocar, na parede da frente, uma placa de Médico, tal qual está na foto. Não havendo nenhum Médico nas vizinhanças, o povo do bairro me descobriu e passou a procurar-me para todo tipo de atendimento, embora, no consultório, eu somente atendia Cirurgia Plástica.
Numa noite, fui atender um velho magrinho que morava numa casa isolada, lá na Av. 46, hoje chamada Av. Mariângela Pucci Ananias. Soube depois que ele era cambista de jogo-do-bicho lá no bairro. Ele estava com roncos pulmonares, uma tosse seca e certa falta de ar. Examinei o tórax dele como manda o figurino, inclusive com a acústica do nº 33.
Ao acabar de examiná-lo, enquanto lhe fazia a receita, ele me falou: “Pois é, Doutor, sempre ouvi falar que o símbolo dos Médicos é uma cobra; hoje entendi o motivo; tudo é por causa dessa história de mandar a gente falar 33 para ser examinado; 33 é a primeira dezena da cobra; o senhor não quer aproveitar e fazer uma fezinha, amanhã é quarta-feira, dia de Federal?!…”