O bar do Seu Antonio, na praça da Matriz, na frente da Igreja de São João Batista, era ponto de encontro para se jogar conversa fora. Todos os dias alguém fazia farol ali.
Naquela tarde, a vez era, mais uma vez, do velho Coronel. Trajando elegantemente o terno de linho branco amarelado pelo tempo e rodando o inseparável chapéu panamá numa das mãos, enquanto a outra erguia um cálice da melhor cachaça da região, assim se preparava para contar mais uma das suas gloriosas façanhas. Pomposo, sempre iniciava com alguma reflexão, quase a moral da história…
– Vejam vocês como esse mundo dá voltas. Vai daqui, vai de lá, a gente só não pode perder a esperança, pois quem espera sempre alcança…
– Imaginem… – dizia com o olhar longínquo na direção da torre da igreja e parecendo querer avivar as lembranças para poder transportar os ouvintes ao cenário que só ele conhecia – …que há muito tempo atrás, eu fui até a Serra do Viadeiro prá caçar. Levei toda a cachorrada. Vocês se lembram dos meus cachorros: bonitos, espertos, cachorros de bom faro, treinados prá não se desperdiçar munição.
– Daquela vez, cacei como nunca. Foi paca, capivara, tudo o que tinha lá. Deu carne prum bom tempo. Passei o dia todo no meio do mato. Andei a serra de ponta a ponta, de manhãzinha até de tarde. Subi morro, desci morro, entrei na água… Era um dia quente, mas a mata fechada deixava tudo fresquinho. Andei tanto por aquilo tudo, que até perdi conta da hora. Quando dei por mim já estava escurecendo. Puxei o relojão prá conferir a hora e cadê? Não estava mais no bolso.
– Senti uma tristeza enorme quando vi que tinha perdido meu relógio de ouro. Daí prá frente, parece que tudo parou. Era herança de meu pai, aquele relógio. Era de estimação, de família. Meu pai tinha trazido da Itália e ele me acompanhava há anos, desde a morte do velho.
– Comecei a procurar: olhei tudo, refiz o caminho de ida e de volta. Tinha que achar o mimo. Parecia um perdigueiro farejando caça perdida. Qual o quê! Nada! Saí do mato quase à noitinha. Desolado. Voltei pra casa bem tarde, inconformado. Com a perda do relógio, a caçada não tinha tido graça nenhuma. Tanto que acabei distribuindo a carne. Tinha perdido o gosto. Meu pensamento ia só pra aquele que tinha ficado lá, sabe Deus onde.
– Depois de uns dias macambúzio, resolvi não perder a esperança. Sempre que podia, voltava pra Serra e percorria palmo a palmo aquele pedaço de chão. Eu sabia que o patacão tava lá. Cedo ou tarde, havia de encontrar.
– Passaram-se mais de dez anos. Num dia, quando estava na escuta de uma caça, o milagre aconteceu. Eu estava assuntando uma paca. Bem quieto. A cachorrada também tava parada, no silêncio! De repente, sem mais essa nem aquela, escutei um tic-tac, tic-tac. Prendi a respiração! Não podia acreditar. Estava ouvindo um relógio funcionando do meu lado, bem aqui no ouvido direito. Devagarzinho, virei a cabeça e dei de cara com ele, pendurado no galho de uma árvore. Era ele, o meu relógio!
– Como era de ouro puro, reluzia que só. Fiquei pasmo. Até que o galho balançou e o sol bateu na maravilha. Foi tanta luz que quase que cego. Só não sabia se era do brilho do ouro ou de felicidade de achar o meu patacão.
Enquanto contava, entusiasmado, exibia o relógio para a platéia embevecida – a prova viva da história.
Foi quando Zé das Couves, matuto desconfiado, franzindo a testa, questionou:
– Tá bom coronel, o relógio tá aí, sãozinho. Mas me diga uma coisa: como que ele foi parar no galho da árvore, nesta altura?
Educado como sempre, o coronel ouviu atentamente o indagante. Parou, fez cara de sabido, sorveu calmamente um belo gole de cachaça e sorrindo com o canto da boca, desfez o mistério. Não sem antes saborear mais um gole, estalando a língua de satisfação. Parecia que esperava a pergunta. Sem desqualificar a questão, muito menos o questionante, solenemente, passou a elucidá-la:
– Eu também me fiz esta pergunta, porque muito me admirei de ver o relógio pendurado ali. Mas quando examinei a árvore e vi que era novinha, cheguei a uma conclusão. Quando eu passei, o relógio ficou enroscado num galho. A árvore ainda era pequena. Em dez anos ela cresceu e o relógio, preso no galho, foi subindo, subindo, até quase dois metros, que era onde estava quando o encontrei.
Enquanto falava, mostrava com os braços, a altura em que encontrou o relógio.
Apesar do oh! da platéia, Zé das Couves continuava irredutível. Desfeita a primeira dúvida, apresentou a segunda:
– Tá bom coronel, a árvore cresceu e suspendeu o relógio. Mas como explica ele continuar funcionando todo este tempo?
– Bom, prá isso não precisei matutar muito, porque logo percebi. Na hora que peguei o relógio na mão, vi que tinha um ci-pó-ziiii-nho (falou fininho, que nem o cipó) enrolado na cabeça da corda. Aí é que entendi. Enquanto o cipó crescia, ia dando corda no relógio. Como ele nunca parou de crescer, nunca parou de dar corda e o relógio nunca deixou de funcionar. Relógio bom tá aqui, nunca parou – exclamou, exibindo outra vez o astro maior do feito. O bar parou, o silêncio era maior que o da aranha tecendo a teia.
Quanto ao coronel, nem se abalou ante a platéia pasma. Olhando com carinho para o relógio, guardou-o de volta no bolso. Encabeçou cuidadosamente o chapéu, ajeitou a gola do paletó e despediu-se dos amigos que, quase refeitos, sorriam timidamente entre incrédulos e admirados com mais uma das sua incríveis histórias.
– Bota na conta Antônio. Até amanhã!
Saiu tranqüilo em direção à praça. Atravessou a rua com passos firmes e a cabeça erguida, guardando na algibeira a sabedoria dos quase oitenta anos. Cumprimentava aqui e acolá os que por ele passavam.
No bar, os amigos agora conseguiam discutir a veracidade da história. Só não duvidavam de uma coisa: o velho coronel era um símbolo da cidade. Era uma figura e, de todos, mais tinha histórias para contar. E contava: história de política, de ganho de causa (justa e injusta), de briga por terra, por mulher e… de caçadas, as suas preferidas. Era uma lenda viva da Serra do Viadeiro. E o melhor era que ele mesmo acreditava nas suas histórias. Tanto quanto acreditava ter vivido todas elas, todos os dias da sua vida.
Isilia Aparecida Silva e Rosa Godoy