Texto: Benedito (Benê) Carlos
A cada natal que se aproxima o meu coração vai apertando e vou sentindo uma mistura de tristeza e saudade. A tristeza não tem muita explicação, não sei se é do próprio espírito natalino, que de uma forma ou de outra me dá a sensação de impotência diante da fome de muitos, da impossibilidade de escola para outros, da falta de trabalho para jovens sonhadores e principalmente para aqueles que não são mais meninos e nem velhinhos, estão entre trinta e cinco e cinqüenta e cinco anos e… desempregados. Este é um fenômeno, arrasador por sinal, porque envolve todos que estão dentro do quadro, competentes ou não, formados ou analfabetos, classe média ou classe pobre, independe, o que vale é que invariavelmente são pais de família … desesperados. Quisera eu ter o dom de abrigá-los todos, de mostrar-lhes um caminho, de dar a eles a oportunidade derradeira no outono de suas vidas. Tenho convicção, eles, todos eles, não precisam de ajuda, de dó, precisam de novas oportunidades, precisam transformar em novos sonhos seus pesadelos, precisam viver com dignidade, precisam colocar em pról de toda a sociedade a força física e intelectual que reside no corpo de cada um e que conflita com uma incapacidade que o meio tenta impor na sua alma, como perdedores e disponíveis.
A saudade me faz viver novamente os momentos felizes arquivados carinhosamente no meu coração. Aquela sensação indescritível do sapatinho na janela ou no fogão à lenha e que o Papai Noel enchia de balas “sete belo” e, se possível, ainda trazia um brinquedinho: uma bola de futebol de plástico para dar asas aos meus sonhos de Rivellino, ou com sorte um apetrecho qualquer, que me incluísse na cavalaria do Tenente Rip Masters para fazer companhia ao Cabo Rust e seu fiel Rin Tin Tin. Saudade também de uma infância pobre e coberta de irmãos, amor, coragem e sonhos, muitos sonhos. Sonho de crescer, de tirar carta de habilitação para dirigir motocicleta sem a sombra do soldado Joel, de mudar o mundo e ganhar o mundo literalmente. E aquela saudade daqueles amigos que se foram, ou que, se não foram, encontram-se tão ausentes, de tal forma que mesmo os encontrando não são mais os mesmos. Tem mais, lembra-se do Jonny Rivers, Trini Lopes e Tim Maia, grande Tim… É primavera, eu amo você menina, pensa que não vai ser possível lhe conquistar… pode o outono chegar!
E as manhãs, as manhãs da nossa vida. Têm aquelas de inverno que mestres, como o Professor Geraldo Azzi Sachs, nos ensinavam no próprio Grupo Escolar Augusto da Silva Cesar a fazer horta, era um fome zero por conta própria e sem publicidade. Do caboclo que, com o velho rádio de válvulas acionado por meu pai, me despertava ao som de “quem não quer capim gordura, qué grama, qué grama…vamo gente, vamo pra frente que atrás vem gente. São seiiiiiis horas”. Ah! meu pai, meu mestre, quanta sabedoria… ferroviário de um único emprego. Ferroviário era assim, todos, trabalhavam uma vida inteira na estrada de ferro, tinham orgulho da pontualidade e limpeza dos trens, e ainda eram capazes, por amor, como fizeram em 1964 no auge da revolução, a se deitarem sobre os trilhos em defesa de seus ideais…
E as manhãs de domingo, depois da missa das nove da igreja do Carmo? A gente mal rezava e já corria esperar o seu Jofre abrir o Cine Coral, com seu inconfundível terno preto, num matinê gratuito e se maravilhava com as aventuras do Rei Salomão, Sansao e Dalila e Hércules. Tem mais, se lembra da John Player Special / Gold Life Team Lotus, preto e dourado que o Emerson Fittipaldi mostrou ao mundo que a gente não era só bom de bola e no seu rastro ainda vinham Piquet e Senna?
Se você quiser mais, assinalo as manhãs de primavera que os jardins do Clube Náutico apresentam a beleza das deusas que ali desfilam… e as tardes? Tarde tem cheiro, você pode passar uma vida inteira e não se esquecerá daquelas tardes de verão nas piscinas lotadas da Ferroviária (e falando-se de Ferroviária que tal Machado, Baiano, Fernando, Rossi e Fogueira; Bebeto e Bazani; Passarinho, Maritaca, Téia e Pio? Que tarde, grande tarde, tarde de emoções bicho. Na TV Record ou na fonte luminosa, reduto dos carros, carrões, motocicletas e um caminhão de gatinhas manhosas. Deixa prá lá se não vou contar sobre a noite, daquelas filas intermináveis no Cine Coral onde o “Wanted” Giuliano Gema vinha procurar o seu dólar furado e nós sempre sentados na mesma cadeira, como se o local estivesse demarcado previamente – entrada lado esquerdo somente quem já tinha namorada, parte debaixo turma do ginásio, lado direito o colegial e a galera comandada pelo Zé Neguinho e a genialidade de seus passos de dança em detrimento a estonteante beleza da Zilda Mayo, nossa musa, que só passava no Veneza.
Ah! meu Deus, que saudade, que festa: aqueles primos de Sampa, falando as gírias que rolavam na capital (“ooorra, mora meu”), vestidos de calça boca-de-sino, anéis de brucutu, sapato carrapeta e colares do Tremendão em jaquetas do Rei da Jovem Guarda, que era o encanto das meninas provincianas do nosso bairro…
Que saudade, quanta saudade, de cada Natal, de cada réveillon.
Feliz 2004 para você. (Benê)