As mulheres

A nossa gente

Na sessão solene correspondente à comemoração dos 63 anos da Escola de Enfermagem da USP, um fato chamou a atenção quando da homenagem feita pela Profa. Rosa Godoy: a instituição tem recebido o saber, a generosidade, a aptidão, a sensibilidade, a ética, o amor e o cuidar de mulheres de Araraquara. A própria oradora, uma araraquarense que fez o primário no Grupo Escolar da Rua 1 (Carlos Batista Magalhães) e ginásio na Vila Xavier (Francisco Pedro Monteiro da Silva), com a vida a partir daí sendo balizada pela USP conforme a qualificação profissional ao final desta página. Rosa Godoy foi eleita vice-diretora da Escola de Enfermagem onde entrou como aluna estando também coordenadora da Coseas (entidade que dá assistência social aos alunos da USP).

Outra araraquarense, Dona Maria Rosa Sousa Pinheiro, foi diretora da Escola de Enfermagem da USP de 1955 a 1978 (texto nesta página). E, consoante a chamada da primeira página, a professora que lhe fez homenagem floral também é da Morada do Sol: Edna Aparecida de Moura Arcuri.

São pessoas que orgulham a nossa gente, agregam qualidade à história da nossa região que, por extensão física e afetiva, vibra com a extraordinária vitória da Profa. Suely Vilela, mulher idealista que vê a sua proposta sair vitoriosa na sucessão do Reitor Melfi. (Leia matéria específica à página 2)

A (bela) mulher feita de tango, ousadia e enfermagem

Nasceu em Araraquara, em 14 de dezembro de 1908. Segundo a numerologia, a expressão dos seus sentimentos humanitários deveria se concretizar por feitos próprios voltados não só para si, mas principalmente para os outros. Em outras palavras, para ser ela mesma, para atingir o auge da sua expressão pessoal (numerológica), deveria se doar para o mundo. Sua maior qualidade seria ser altruísta. Por outro lado, esse desejo intenso de ajudar lhe causaria também sofrimento, a despeito do bom humor e da alegria que seriam duas das suas marcas relacionais. Seu mapa astral a revela sagitariana. O Sol em Sagitário em conjunção com Mercúrio enfatiza o que seria sua extrema habilidade comunicacional. Por espiritualidade e curiosidade coletaria saberes que seriam transmitidos inevitavelmente. É como se seu destino fosse acumular saberes para transmiti-los com uma repercussão revolucionária. Estaria fadada a saber para fazer, revolucionando a si mesma e aos outros. Outra característica marcante do seu mapa astral é a determinação: tudo o que faria, seria com garra e impulsionada por um desejo de ação, de transformação. Seria muito forte, teria dentro de si uma guerreira, ao mesmo tempo amorosa, meiga, doce e extremamente justa. Ainda, a Lua em Virgem em conjunção com Júpiter (o planeta sagitariano) mostra uma imensa competência técnica, cujos inúmeros saberes fluiriam com uma minuciosidade sutil e delicada, expressados com muito amor e maestria. Sabedoria, delicadeza, altruísmo, garra e perfeccionismo fariam dela uma enfermeira sui generis. Estava escrito nas estrelas…

Ainda menina, veio morar em São Paulo. Diplomou-se pela Escola Normal da Praça da República, mais tarde Escola Normal Caetano de Campos. Em 1930, fez o Curso de Educadora Sanitária no Instituto de Higiene, hoje Faculdade de Saúde Pública da USP. Em 1937, graduou-se Bacharel em Letras Estrangeiras pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP.

Em 1940 foi para Toronto, no Canadá, com bolsa de estudos da Fundação Rockfeller, para fazer o Curso de Enfermagem Geral e de Saúde Pública. Faria também estágios e visitas a outras escolas e serviços especiais, preparando-se para compor o corpo docente e quem sabe, dirigir a Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (EEUSP). Foi escolhida porque reunia todos os quesitos necessários ao empreendimento. Além de ter nível superior, apresentava traços de personalidade e caráter que atendiam ao esperado de uma enfermeira. Era sensível, inteligente, observadora, discreta, elegante, na justa medida de uma digna descendente de Florence Nightingale.

Voltou para o Brasil em 1944 e logo assumiu a Vice-Diretoria da EEUSP, que à época encontrava-se sob a direção de D. Edith de Magalhães Frankel. Passou a Diretora em 1955, após a aposentadoria de D. Edith. Na época, encontrava-se afastada da EE, trabalhando no Serviço Especial de Saúde Pública, no Rio de Janeiro e retornou a pedido das docentes da casa para dirigi-la. Passaria 23 anos no cargo, com uma gestão marcada por inúmeras inovações e conquistas, tanto no ensino como na constituição da enfermagem como profissão.

Ampliou o prédio, introduziu o exame de seleção das candidatas ao curso (precursor do vestibular) e um programa de orientação às alunas recém-admitidas, conseguiu a contratação de professoras na proporção de uma para cada grupo de 10 alunas; introduziu o sistema de avaliação do Curso pelas próprias estudantes ao término de cada disciplina, como maneira de provocar a sua participação no planejamento curricular. Depois de muito batalhar, finalmente, em 1958 testemunhou a criação oficial do Curso Superior de Enfermagem, sendo obrigatório para matrícula o certificado de conclusão do curso secundário. Era a entrada da Enfermagem no Olimpo universitário, depois de um longo período de luta para que se constituísse como profissão de nível superior. No ano seguinte, em 1959 instalou os 2 primeiros cursos de pós-graduação desta Escola, destinados ao preparo de docentes e de administradoras de unidades de enfermagem.

Em 1965, a Câmara Municipal de Araraquara outorgou-lhe o título de “Cidadã Benemérita”. Em 1968, a ABEn concedeu-lhe o título de Sócio Honorário pelos relevantes serviços prestados à Associação. Em 1969, a Associação de Ex-alunas da Divisão de Enfermagem do Teachers College da Columbia University de New York concedeu-lhe o Prêmio de Realização no Campo da Educação. No mesmo ano, recebeu o título de “Enfermeira do Ano” da ABEn e foi eleita “Enfermeira Paulista”, recebendo o prêmio instituído pelo Governo do Estado.

As estrelas estavam certas

Dona Maria Rosa foi considerada “notório Saber em Enfermagem”, significando que seu saber independia de concursos ou títulos. É até hoje a única enfermeira possuidora de tal título no Brasil. Aposentou-se em 1978, aos 70 anos, após 23 anos de uma memorável trajetória como docente e dirigente desta Escola.

De diretora a conselheira

MR, como era chamada pelas alunas, morava no apartamento instalado no andar térreo deste prédio. Com habilidade, firmeza e sabedoria, comandava a moradia, zelando incansavelmente pela ordem física e moral daquilo que chamava de uma escola de moças. Os poucos estudantes do sexo masculino residiam no subsolo da Escola e eram absolutamente inexpressivos numericamente.

Apesar da rigidez, podia-se contar com ela para a solução dos demais problemas da vida pessoal, de saúde ou familiares, até as brigas com noivos ou namorados. Dotada de uma moral rígida e solidamente ancorada nos valores vigentes da época, inclusive em relação à mulher, nem por isso, deixava de nos atender nas necessidades de afeto ou escuta. Não raro, inclusive, nos convidava para um teatro ou para jantar com ela e Dona Helena, a fiel amiga e secretária. E a gente, adorava, a auto-estima batia no teto. Afinal, era uma saída com a diretora, de carro oficial e tudo.

Nesse contexto, merece destaque sua atuação em relação a nós, estudantes e militantes do movimento estudantil, durante o período da ditadura militar. Embora não concordasse com os métodos revolucionários adotados, sempre nos protegeu e guardou, enfrentando a repressão com a principal arma que possuía – o poder dado pela investidura do cargo que ocupava.

Em 1969, a invasão

Várias unidades da USP e de outras universidades foram invadidas pela Polícia Militar à procura dos líderes do movimento estudantil. Isto, em geral, ocorria na calada da noite ou nos finais de semana. Na noite em que esta casa seria invadida, um dia de semana, por volta das 22 horas, a Diretora postou-se à porta e, estendendo os braços, barrou veementemente a entrada dos soldados. Dirigindo-se duramente aos oficiais, disse que aqui ninguém entraria, por nada deste mundo. Afinal, era uma escola de moças, sob sua responsabilidade. Além disso, ela podia garantir que aqui não se escondiam pessoas procuradas pela polícia, nem estudantes baderneiros. Eles foram embora sem nada fazer… e nós, escondidas no vão da escada, vibramos. A praxe era os dirigentes entregarem os baderneiros…

Mal sabíamos que segundos depois da saída da polícia, várias de nós seríamos mais uma vez duramente repreendidas por ela por participarmos de passeatas, comícios e outras manifestações, fatos estes que, segundo ela, haviam provocado a batida policial. A coisa não parou por aí. Para despistar a ação do DOPS, órgão governamental responsável pela caça aos subversivos, imediatamente providenciou a nossa participação na cerimônia de queima das bandeiras (as bandeiras oficiais velhas eram queimadas solenemente no Quartel do II Exército para depois serem substituídas por novas). No ato, além dela e de várias docentes, compareceram (para conduzir as bandeiras à pira ardente) três alunas, entre as quais uma sabidamente pertencente à liderança estudantil.

Outro fato que mostra que sabia das nossas atividades e não nos entregaria jamais era o apoio que dava ao Coralusp, na pessoa de Benito Juarez, o maestro, e que também, como ela, apoiava os estudantes que necessitavam fugir do país, inclusive com ajuda financeira. Entre eles, pairava o silêncio e o respeito mútuo. Para nós esses fatos não existiam. Só saberíamos deles muito mais tarde, muito depois da queda do regime militar.

Uma mulher entre homens

Num mundo tipicamente masculino: atuação no Conselho Universitário da USP. Ata da 545ª Sessão: “aos três dias do mês de fevereiro de 1964, às 14 horas, reuniu-se o Conselho Universitário, na Reitoria da Universidade de São Paulo, na Cidade Universitária 'Armando de Salles Oliveira’, sob a presidência do Magnífico Reitor Luis Antonio da Gama e Silva (…). Expediente: O Reitor congratula-se com a presença de D. Maria Rosa Sousa Pinheiro, Diretora da Escola de Enfermagem de São Paulo, que toma assento no Conselho pela primeira vez, em razão da transformação da Escola em Estabelecimento de Ensino Superior, dizendo esperar a melhor colaboração. A Conselheira Maria Rosa Sousa Pinheiro agradece e promete colaboração….

Depois deste dia memorável, Dona Maria Rosa participou intensa e constantemente das reuniões do Conselho Universitário. Era a única mulher entre 30 conselheiros homens. Manteve-se assim até que a Dra. Glete de Alcântara, diretora da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, também passasse a compor o CO. Marcou presença e fez solicitações, a despeito da atitude marcadamente androcêntrica da mesa e do plenário. A aparente consideração para com elas nem sempre redundava em igualdade de oportunidades em relação aos homens. A praxe era conceder-lhes a palavra somente ao final da reunião ou mesmo na reunião seguinte. Isto ela nos contava sem fazer alarido, ressaltando que o que lhe garantia a participação era mais a insistência que o poder, visivelmente diferente dos homens.

O que diziam dela

Por ocasião de seu 80º aniversário, um livro condensou depoimentos de inúmeras pessoas que a conheceram e que a identificaram como possuidora de uma personalidade marcante e significativa, tanto para a EEUSP como para a Enfermagem Brasileira. Nos bastidores, uma mulher interessantíssima.

Mestre, orientadora, amiga de todas as horas, inúmeros foram os adjetivos empregados pelos amigos a seu respeito, tão comovidos quanto honestos. Alguns ressaltaram o lado autoritário, durão e disciplinador. Outros, a sua face sensível, solidária e generosa. A turma de 1963, por exemplo, recorda que discretamente ela pagou a viagem de uma aluna que não tinha condições de vir da cidade natal para a formatura. Outra vez, sem se identificar, enviou uma vultosa soma de dinheiro para uma ex-aluna comprar uma casa para abrir uma escola nos confins de Sergipe. Só muito mais tarde, a própria aluna conseguiria saber de onde tinham vindo os recursos.

A vida pessoal

A perfeição com que dançava tango e a delicadeza com que sorvia um bom vinho ou se entregava ao prazer do cigarrinho às escondidas convivia com a intransigência disciplinar e a radical fidelidade aos amigos e à profissão. Com traços como estes, ela conseguia ser, como ninguém, ao mesmo tempo, durona e carinhosa, rígida e alegre, forte e sensível, exigente e solidária, realista e sonhadora. E, principalmente bem-humorada. No momento do brinde, suas palavras preferidas ao tilintar dos copos eram: “às nossas qualidades que não são poucas e aos nossos defeitos que não são tantos. Estes, bem mais interessantes que aquelas”.

Uma nobre

Por mais que tenha sido uma pessoa marcante na vida profissional e que tenha tido uma situação financeira privilegiada (já de origem), nunca laureou a própria cabeça com as glórias recebidas. Considerava-as dispensáveis, passageiras, totalmente aleatórias. Ao contrário, manteve-se herdeira e reproduziu os valores paternos de bondade, honestidade, hospitalidade e simplicidade. Na enfermagem encontrou estofo para o que recebeu em casa. Quem a encontrava fora de seu ambiente de trabalho, não conseguia avaliar a sua magnificência. Só no convívio mais demorado é que se percebia toda a sua sabedoria, cultura e grandeza de espírito.

Viveu uma vida simples e morreu em 21 de junho de 2002, aos 93 anos, de maneira mais simples ainda. Contudo, apesar disso, sua grandeza permanecerá para sempre indelével na memória dos que tiveram a felicidade de conhecê-la e com ela conviver.

Uma árvore para Dona Maria Rosa

Para eternizá-la no solo da Escola que tanto amou, foi plantada uma árvore em sua homenagem.

Autoras: Rosa Godoy e

Hideko Takeuchi Forcella

De aluna a vice-diretora

Rosa Maria Godoy Serpa da Fonseca (na primeira página ao lado da mãe Therezinha e pai Roberto Godoy que tiveram ainda os filhos Beto, Céia, Cado e Nato), é Enfermeira de Saúde Pública. Mestre em Saúde Pública. Doutora em Enfermagem. Professora Titular do Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva da Escola de Enfermagem da USP. Coordenadora de Assistência Social da USP. Coordenadora do Programa “Educação para a saúde visando prevenção e controle de alcoolismo e drogadição no contexto da melhoria da qualidade de vida no Trabalho”.

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