Antonio da Cruz: uma loucura produzida

Rosa Godoy (*)

Juro que a história é verdadeira, digna de um romance de Saramago (tipo Todos os Nomes ou O homem Duplicado), embora, por princípio ético, eu não possa identificar os personagens. Para protege-los, uso nomes fictícios, mas divido fatos e sentimentos: indignação (vocês verão porque), tristeza (às vezes a humanidade extrapola o limite da crueldade) e satisfação (as coisas podem terminar bem se há compromisso profissional).

Clarismundo Cândido da Cruz detestava que lhe chamassem pelo nome. Dizia chamar-se Antonio. Internado há 10 anos naquele hospital psiquiátrico, vindo de outro, era um “paciente dócil”. Dava-se bem com todos, aceitava o tratamento sem resistência. Vivia quieto pelos cantos, lá isso é verdade, mas como numa instituição deste tipo tal comportamento é usual, nunca lhe foi dada maior atenção. Falava sozinho a maior parte do tempo, coisas incompreensíveis. Dizia-se viúvo, pai de uma filha que nunca apareceu. A história era sempre a mesma, entrecortada por comentários que pareciam xingos (do tipo manso, de acordo com o seu perfil, mas xingos). Nada incomum ali…

Depois de vários escândalos, o hospital passou por uma reformulação completa. Inspirada num dos programas da nova fase, visando a desospitalização e reinserção familiar dos pacientes, a psicóloga Sueli resolveu ir atrás da tal filha de Antonio. Começou a procurar pela cidade onde constava que ele tinha nascido. Nada em cartórios ou em outros locais onde se pudesse localizar o nome de um louco. A cada investida fracassada, lembrava-se de Saramago e recuperava as forças para recomeçar.

Fuçando no prontuário do hospital de onde ele tinha vindo, descobriu que a primeira internação havia sido depois de um episódio policial. Por coincidência, o Boletim de Ocorrência era da cidade de origem da própria profissional e relatava um crime acontecido em uma fazenda tradicional da região. No final de semana, comentou com a mãe. Quase caiu de costas, ao constatar que a velhinha conhecia em detalhes a história de um tal de Antonio que havia enlouquecido após a traição da mulher, matado um sujeito. Só que este Antonio tinha morrido num hospital psiquiátrico, tempos depois. O fato era conhecido de todos os mais velhos da cidade. Até os filhos do tal eram referidos como filhos do “louco da Cruz”. Tinham atestado de óbito comprovando a orfandade, apesar do enterro ter sido na própria cidade onde ficava o hospital. Só o futuro padrasto havia ido.

Eram quatro e haviam crescido sem pai e quase sem mãe, depois do casamento malfadado da própria com o administrador da fazenda onde moravam. A viuvez libertou a mulher, porém não conseguiu resgatar os filhos da tristeza da perda precoce do pai e, mais ainda, de carregarem por toda a vida a pecha de “filhos do louco”. Até hoje, Sueli não sabe explicar porque achava que essa história tinha a ver com a vida de Clarismundo, seu paciente, que preferia ser chamado de Antonio. Para tirar a cisma, resolveu levá-lo até cena do crime. Não deu outra! Perguntando daqui e de lá, vasculhando memórias de antanho, recuperando contos e cantos, descobriu que ambos eram a mesma pessoa, só a história não era bem o que contavam.

Antonio descobriu que sua mulher lhe punha chifres com o filho do coronel Gerismundo, dono da fazenda. Bentão não devia nada à fama que tinha de conquistador e páreo para toda obra, em se tratando de rabo de saia. De outro lado, Marita, fogosa e faceira, apesar da maternidade e do casamento, não precisou muito esforço para lhe cair na teia. No auge dos 25 anos, tudo se pode explicar pela natureza. Como diz o velho ditado: “Água morro abaixo, fogo morro acima e mulher que quer dar (ainda mais se tem homem pra receber – contribuição minha para o cancioneiro popular), ninguém segura”.

O marido traído descobriu, malucou (quem não malucaria???), deu uma surra em Marita e saiu à procura de Bentão. Encontrou-o já morto, sabe-se lá por quem, provavelmente outro companheiro de chifre que se aproveitou do fato e fez justiça antes. Zé Fredo, administrador da fazenda, que estava de olho em Marita, tirou sua casquinha e acusou Antonio. Era homem de confiança do coronel.

Antonio foi condenado e preso. Inconformado e usando de influência política, o coronel conseguiu a internação do maldito num manicômio, com direito a eletrochoque, solitária e tudo o mais para acalmar o touro que se dizia inocente. “Queimaram-lhe os miolos?”, foi a fala da mãe de Sueli, quando o reconheceu e conseguiu identificar as frases “sem sentido” que ele vinha pronunciando naqueles quase 50 anos. Contava o fato tintim por tintim.

Os filhos acolheram o pai e perdoaram a mãe, que pagou caro pela desdita. Quanto a Sueli, nem Sherlock Holmes teria feito melhor. Guardou uma cópia do atestado de óbito de Clarismundo Cândido da Cruz para nunca se esquecer de mais uma história, das muitas que recheiam os muros do mundo dos loucos. Ainda bem que ainda se fazem profissionais comprometidos com a dignidade de seus pacientes, sem ligar para frases sem sentido!

(*) É Enfermeira e colaboradora do JA.

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