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A falta que ele me faz

Rosa Godoy(*)

– Pois é, foram sessenta anos juntos. Agora estou aqui, sozinha. Sinto muita falta dele, ele era tudo prá mim, fazia tudo prá mim!

E assim, todas as vezes que me encontra, ela desfila sua dor. Pele e osso é como está, embora mantenha acesa a chama da vaidade que a tem acompanhado nessas mais de 8 décadas de vida. Não me esqueço do dia da morte dele (eu soube, o enterro já havia acontecido), quando fui consolá-la, ela, entre uma lágrima e outra, verdadeira unção do inconformismo da recente viuvez, reclamou: -O pior a senhora não sabe. Além de tudo, ele ainda me morre no dia em que eu estava toda desarrumada. Nem pude ir ao cabelereiro. Estava com o cabelo sem tingir, a unha prá fazer, toda assim. Tive que ir daquele jeito mesmo. Claro que todo mundo reparou, nunca andei assim tão relaxada. Fui explicando e acho que iam entendendo minha situação, mas ficou muito chato…

Sempre a admirei, como a todas as genárias (sexa, septa, octa, etc) pelo quanto tornam as coisas mais simples, embora repletas da mais profunda e genuína sabedoria, advinda da experiência e do conhecimento amealhados durante toda a vida. Depois de uma certa idade, elas ficam mais diretas -descomplicadas – poder-se-ia dizer, abrindo mão das convenções sociais que castram desejos, vontades e expectativas. Não falam, ao contrário, destapam a alma contida da mocidade. Exemplo sui generis é D. Lídia que se refere à amante do filho (da qual gosta muito e a recíproca é verdadeira) como a nora do coração e à titular como nora de obrigação. Aceita de bom grado os presentes de ambas, satisfazendo gregos e troianos, devidamente ancorada pela autoridade de matriarca. Nem mesmo o dito cujo a contraria, entendendo a referência como lisonja, refestelando-se na aprovação materna para o pé em duas canoas.

D. Adelaide, a heroína do início, leva a vida independente, apesar da queixa constante da falta do marido. Sempre agiu pela própria cabeça, mesmo quando ele era vivo, pois eram dela a maior parte das decisões do casal. Filhos não tiveram e suspeito que nunca fizeram falta, pois bastavam-se a si mesmos. Quanto ele era Síndico (cargo que ocupou por longos 16 anos), era ela quem lhe escudava nas situações mais conflitivas. O grande problema do prédio era a criançada, verdadeiro mote do acirramento da guerra de gerações (os mais jovens com filhos pequenos ou em idade escolar versus os sem filhos ou com eles já criados). Arteiras como só, as crianças viviam deixando os funcionários de cabelo em pé. O campeão era o loirinho de maiô vermelho entupia todos os ralos, enchendo-os criteriosamente de areia e pedra, caminhãozinho após caminhãozinho, surdo aos apelos (e às broncas) da Primeira Dama. A pendenga só teve fim quando a mãe capitulou e pagou do seu próprio bolso 16 ralos com tampa para toda a área comum do edifício.

Cada vez que inventavam uma nova, lá ia ela, de porta em porta, seguindo a longa lista de mais de 30 nomes, conclamando os pais para a difícil tarefa de corrigir os monstrinhos. Concordando ou não, bem que tentavam colocá-los na linha, mas os pequenos eram por demais criativos e, assentada a poeira da bronca ou da orientação, começavam tudo outra vez. Ele, o Síndico, qual impávido colosso, não entrava em confronto, mantendo-se alheio às pequenas causas.

Mas o tempo, implacável como sempre, desfez-lhe o status e a missão, ficando ela relegada à situação de mais-uma-velhinha, entre as incontáveis viúvas que engrossam as estatísticas censitárias. Se alguém pensa que se acha à espera da morte, é ledo engano: fala como se fosse viver por mais um século. Tem até plano de mudar-se para o interior porque lá a vida é mais sossegada, já que anda um pouco cansada da correria da capital.

Todos os dias levanta-se cedo, toma os remédios (com ajuda do Zelador, que lhe substitui as lentes que se recusa a usar), caminha até ao supermercado da esquina (onde a conhecem e a ajudam com as compras), papeia com um ou outro vizinho, sobe, faz a comida (que invariavelmente queima), cuida como pode do solitário lar. Uma vez por semana vai à manicure e ao cabeleireiro, em dias diferentes, para não se cansar. Nem pensa em sair sem maquiagem ou desvestida das roupas exóticas e bijuterias baratas que a transformam em personagem-tipo da poesia de Jenny Joseph: Quando ficar velha, vou me vestir de púrpura. Com um chapéu vermelho que não combina e não me cai bem… Só não posso negar-lhe o charme. Falar da falta dele é parte da rotina. Chooora! No entanto, semana passada, surpreendeu-me quando completou o lamento: – Nunca tive, mas acho que agora vou arrumar um gatinho, sempre é boa companhia.

Nada como sabedoria de vida!

(*) É enfermeira e colaboradora do J.A

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