João Baptista Galhardo (*)
Conta Esopo que no tempo em que os animais falavam, um forte leão com garras e dentes afiados, pediu a um camponês a mão de sua filha em casamento. O camponês com medo de indeferir o pedido, disse ao leão que não se opunha ao matrimônio. Com muita astúcia, calma e sabedoria, pediu-lhe, entretanto, que lixasse suas garras e seus dentes pontudos para não machucar sua delicada menina acostumada a cuidar da pele com leite de cabra. O leão, cego de paixão, atendeu o pedido. Assim que ficou indefeso, sem garras e dentes, o camponês chamou seus cachorros que mataram o rei da selva a mordidas. Quis o fabulista com isso dizer que à medida que a paixão cresce a prudência desaparece. Prudência é juízo, sensatez, ponderação, cautela, cuidado, comedimento. Não concordo que paixão seja sinônimo de amor. Amor é atenção, afeto, carinho, ternura, assistência. É permanente, duradouro, compreensivo, solidário, é permuta e concessão. Enquanto paixão é martírio, sofrimento, dor, obstinação, parcialidade, injustiça e iniqüidade. Pode até eventualmente proporcionar prazer, mas passageiro e fugaz. Não se trata somente da paixão entre duas pessoas. Todo tipo de paixão não é sinônimo de amor. O torcedor de futebol apaixonado pelo seu clube que acaba ferindo e até matando um que está ao seu lado aplaudindo o adversário, não age por amor. Quem mata a mulher por quem se apaixonou, sob pretexto de ciúme, também não procede por ternura ou afeto. Com muitos anos de convívio com a família forense só testemunhei derrotas de advogados apaixonados pela causa. Podem sim, agir com dinamismo, entusiasmo, até mesmo com emoção, mas nunca com paixão que leva a perda do senso, do ridículo, da lógica, não se fazendo compreender pelo julgador, perante o qual deve desossar o problema que lhe foi confiado. Conheço um Promotor de Justiça que não perde um Júri pela sua competência, e em razão de sua forma lhana, educada e desapaixonada de trabalhar. Cumprimenta e respeita inclusive familiares do réu se estiverem presentes. Não faz tipo. É próprio dele. O causídico que não formula suas premissas para chegar a um silogismo próprio, que lhe indique o que é certo e justo, acreditando de forma cega e apaixonadamente no que diz o seu cliente acaba prejudicando-lhe, embaralhando-se nas suas certezas que nem sempre correspondem à verdade. Conheci um Juiz tranqüilo que lia a sentença condenatória ao réu, com tanta educação, calma e respeito que o condenado dizia à sua escolta: “que cara legal esse aí”. A paixão e a prudência se atropelam. Diz ainda o fabulista que um homem de cabelos grisalhos apaixonou-se ao mesmo tempo por uma mulher bem mais velha e por outra bem mais nova. Esta lhe arrancava os cabelos brancos para que ele não parecesse ter mais idade que ela. A outra, ao contrário, lhe tirava os cabelos pretos. Imprudentemente, o apaixonado foi prejudicado pelas duas, ficando careca. Na China, um homem há muito tempo perdido, já sem força e faminto encontrou uma casa de três andares no alto de uma colina, onde foi cordialmente recebido por um velho, que lhe deu roupa limpa, comida e cama quente no último andar. Vivia o ancião com uma linda neta. Durante a refeição o visitante ficou, à primeira vista, perdidamente apaixonado pela donzela. O chinês percebendo seus desejos o preveniu: “não mexa com a menina. Quem abusa da hospitalidade sofre três torturas chinesas”. O visitante julgou que valeria a pena arriscar e se relacionou com moça, por quem estava loucamente apaixonado. No dia seguinte, quando acordou, tinha sobre seu peito uma pesada pedra, como primeira tortura. Achou leve, diante do prazer que havia tido, atirando-a pela janela, quando viu escrito numa face: “esta pedra está amarrada por uma linha de pescar ao seu testículo direito. Saltou para alcançá-la, quando viu escrito em outro lado: “e o seu testículo esquerdo está amarrado no pé da cama”. Prudência e paixão não se dão as mãos. A prudência desaparece na proporção que a paixão cresce.