Vera Botta (*) – vbotta@techs.com.br
As coisas fora de lugar
O mundo parece estar de ponta cabeça. Vivemos tempos difíceis, contraditórios. De perplexidade, de medo de falar, de expor sentimentos. De atrofiamento de espaços de liberdade. Tempos de barbárie? Será efeito da guerra? Abrimos os jornais e as manchetes “Bombas matam em maternidade”, “33 mortos, 15 de uma família” nos entristecem. “Por qual deles devo chorar?”, pergunta de um único sobrevivente de uma família de 16 pessoas é mais de que a expressão de um drama de guerra. Temos, a cada dia, evidências de violação dos direitos humanos.
Assinaram-se convenções e convenções. Firmaram-se legislações humanitárias. Para que servem? Quem as faz valer? Quais instituições podem efetivamente processar o desrespeito, o ato forçado de lutar para não morrer, a perda da esperança? E os países poderosos sairão imunes pelo seu poder?
Vamos por os pingos nos iis. Se o pretexto para a guerra foi a alegada violação iraquiana de resoluções internacionais, como seriam considerados perante tais convenções, os ataques americanos a civis? Ou só são punidos pela violação os mais fracos? Hipocrisias que fazem a gente pensar que a decantada defesa dos direitos humanos tem que sofrer mudanças, de direito e de fato. Quem vai ser punido pelo sofrimento do povo iraquiano? A guerra trará ao mundo lugares mais seguros, menos violados?
Mutatis mutantis, o que dizer da Câmara Municipal?
Evidentemente, fendas em paredes, estruturas físicas abaladas, gabinetes sem janelas não se comparam ao desencantamento e sofrimento de uma guerra. Trata-se de uma pálida ameaça à segurança se tomarmos como parâmetro a tragédia iraquiana. E por que todo esse zum zum zum por causa da constituição de um outro local para a Câmara. Seria abuso de poder? Ou vontade de ostentação? O que está por trás desta questão que já gerou bem mais do que fatos, muitos boatos?
Conheça a história
A Câmara Municipal, tombada pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico do Estado – CONDEPHAT – vem há tempo apresentando trincas e rachaduras. Descuido dos poderes? Não é tão simples dizer taxativamente isto. Todo patrimônio tem que ser cuidado e, no caso da Câmara, os problemas surgiram em todas suas dependências muito antes da atual gestão.
O tombamento do patrimônio público – processo que demorou anos e anos e só foi legalizado em 1999 – não trouxe a reparação que já se fazia necessária à sua estrutura. Estipulou a impossibilidade de serem feitas reformas nos prédios tombados que pudessem implicar em sua descaracterização e sanções no caso de infração. E quem paga a reparação de um patrimônio? O dinheiro público, evidentemente. Por que não se fez a reforma na Câmara antes? Os problemas de um orçamento municipal vão muito além da dança dos números. Temos convivido progressivamente com perdas, nas quais, muitas vezes, sacrifica-se a saúde ou a possibilidade de uma política de inclusão social. Sacrificam-se vidas. Castram-se expectativas dos jovens, dos velhos. Tempos difíceis.
O fato é que, em fevereiro deste ano, repassamos ao Prefeito nossas preocupações face à segurança do prédio. Mesmo porque em caso de eventuais danos, a responsabilidade incide sobre a Prefeitura e a Câmara.
O que fazer?
“Se ficar, o bicho pega, se correr o bicho come”. Sábios ditos populares. O certo é que temos que encontrar outro local para a Câmara. Por isso nosso patrimônio vai se deteriorar? Não e não, se depender da nossa vontade. Mas, a reforma da Câmara não é simples, nem barata.
Buscou-se outra solução. Uma comissão de vereadores, há um ano apresentou um estudo de possibilidades de áreas para a construção de nova Câmara! Nada aconteceu. De repente, uma bomba: a proposta da Câmara no Shopping! Surpresa! Sentimentos múltiplos nos envolveram nos últimos dias…
A Câmara estaria fora de lugar?
Mesmo se não houvesse a questão orçamentária, mesmo se não existissem pendências de regularização do imóvel – e elas existem, pois o valor estimado está acima do possível e há problemas de ordem legal – a Câmara não deveria, na minha modesta opinião, ir para o Shopping. Preconceito? Purismo? Nada disso. É agradável ir ao Shopping, embora esta não seja um oportunidade que todos tenham.
A Câmara tem que preservar sua identidade, firmar-se como Câmara cidadã e buscar formas de aproximação com a população. Para fazê-la conhecer seus direitos. Para lutar pela construção de sua cidadania. E a Câmara no shopping pareceria, simbolicamente estar criando barreiras e fronteiras com a população que muitas vezes vai à Câmara escancarar sua privação dos direitos. Talvez a Câmara no Shopping pudesse representar, de um lado, uma confortável acomodação. De outro, no entanto, vejo a configuração enganosa de que desigualdades sociais podem ser magicamente superadas. Dizer que o mundo do ter e do sentir podem conviver harmonicamente não é uma verdade, ou melhor é uma hipocrisia. Nem por isso, a Câmara não precisa de outro local!!!
Nem tudo são trevas
A fala de Hamilton Faria, coordenador do Instituto Pólis, no último Sábado, nos abriu expectativas e sonhos de (re)encantamento do mundo. Pelas mãos de uma cultura ampliada que poderia ir muito além das estruturas e do mundo dos poderes. Em direção a um mundo solidário que pudesse vencer a competição e a desagregação e criar elos autênticos de uma cultura da paz. Que não tem donos, mas investe na construção de uma sociedade mais feliz em todos os campos das atividades e da convivência humana. Hamilton nos deixou um recado. As coisas estão e ficarão fora de lugar se não encontrarmos espaço para movimentos de luta pela paz nas escolas, nas praças, nos cantos e recantos de nossa Morada. As coisas ficarão fora de lugar se deixarmos o ter vencer o ser e deixarmos mudos os tambores da paz. As coisas ficarão fora do lugar se o poder provisório nos impedir de pensar na coletividade, na geração da não violência e da solidariedade. As coisas voltarão ao lugar se prevalecer o respeito à vida.
A Coluna fica por aqui. Minhas condolências à família de D. Zizi Fortes, pessoa queridíssima e de Paulo Campos, cuja sensibilidade sempre me tocou. Boa semana a todos. Até a próxima!
(*) É vereadora pelo PT e pesquisadora da Uniara.