Transfusão e Tesão

Vivo contando meus lances e já escrevi sobre uma súbita hemorragia que sofri no passado. Escrevi, mas deixei de falar que minha segunda hemorragia, em 1973, foi muitíssimo mais grave que a primeira, de 1962.

As duas hemorragias foram do duodeno que, como todos sabem, é a parte da tripa fina que fica logo depois do estômago.

Para os leitores que não são muito afinados com coisas do corpo humano, fiz um desenho ilustrativo que mostra exatamente onde me abriu uma úlcera, subitamente, que foi logo sangrando.

Quando a gente engole, a comida desce pelo esôfago e atinge o estômago meio de lado, ao invés de ser bem no topo. Na comunicação de um com o outro, existe uma válvula muito fraquinha que se chama cárdia, por estar pertinho do coração.

Caindo no estômago, a comida mergulha numa poça de ácido clorídrico, que é o mesmo das baterias do carro, também chamado ácido muriático. Esse ácido é um dos produtos do estômago que fazem a digestão, mas provoca azia e queimação em determinadas circunstâncias.

Quem está um tanto estressado produz mais ácido, o qual, ajudado por algumas bactérias oportunistas, provoca uma úlcera na mucosa do estômago. Se essa úlcera for uma feridinha meio funda, ela pode sangrar.

No final do estômago, existe uma válvula chamada piloro, que se abre para a comida passar ao duodeno. Passando a comida pelo piloro, o ácido que passou junto e as mencionadas bactérias podem atacar a mucosa do duodeno dando a úlcera duodenal, que também pode sangrar se atingir um vaso sangüíneo.

Duodeno, como disse, é a primeira parte do intestino delgado, tendo esse nome por causa do comprimento dessa parte ser de doze dedos. Nos tempos do grande Médico belga, André Vesalius, chamado "Pai da Anatomia", nossos órgãos tinham seus nomes em Latim e o duodeno era chamado "duodenus digitorum", cuja tradução é "doze dedos". Na nomenclatura em vigor no Brasil, o nome do órgão é apenas duodeno, que em Latim significa exatamente doze.

O sangramento do duodeno é denominado enterorragia. Quando as tripas ficam cheias de sangue, ele pode ser vomitado ou evacuado. Prá quem gosta de palavras interessantes, explico que o vômito de sangue se chama hematemese, cuja pronúncia pode ser hematemése ou hematêmese. As duas pronúncias são corretas. Quando o sangue sai por baixo, o nome é melena. O sangue sai digerido, cor negra e cheiro insuportável… Tão insuportável que nenhum cliente diz que evacuou sangue; eles dizem que cagaram sangue…

Digo isto de cátedra porque já tive os dois tipos de sangramento. Em 1962, tive apenas melena e fui tratado em casa pelo Dr. Antonio de Oliveira Santos, a quem devo reiterados agradecimentos e respeito, sendo um dos maiores diagnosticistas que já conheci. Diagnosticista é aquele médico que tem o dom do olho clínico, conseguindo detectar a doença aos menores sinais.

Em 1973, a coisa foi dramática, como já contei. Fui passar o Natal em São José do Rio Preto, vindo prá Araraquara no dia 26 de dezembro, que foi uma quarta-feira. Eram cerca das 19 horas e eu fui até à Kibelanche para comer e beber algo. Naquela ocasião, a Kibelanche era uma lanchonete bem menor. A largura era a metade da atual e havia uma pia pequena, branca, logo perto da entrada, do lado direito.

Pensei em pedir um suco e uma empada, mas comecei a sentir tonturas e um forte enjoo, percebendo que iria vomitar. Corri até à porta, apoiei-me na quina da parede, espichei a cabeça prá esquerda e vomitei na calçada jatos e mais jatos de sangue puro. Ainda bem que a rua estava escura, de modo que não estraguei o apetite de ninguém… Disfarçadamente, lavei as mãos e a boca naquela pequena pia e me mandei sem comer nem beber.

Chegando em casa, vomitei mais sangue e pedi socorro para que me levassem correndo à Santa Casa. Fui internado no antigo apartamento 22 e socorrido pelo meu querido colega Dr. Paulo Homem, que tem sido o Médico de minha família toda. Não tive escapatória: precisei tomar transfusão de sangue.

Agora vou contar algo que jamais contei. Tendo vomitado um pouco ao lado da cama do hospital, veio uma jovem servente para limpar o chão. Eu estava fraco e zonzo, de forma que nem me interessei em prestar atenção nas curvas da moça, apesar dela ter ficado de quatro para fazer a limpeza. Minutos depois, o sangue da transfusão já estava correndo em minhas veias e ela voltou para completar a limpeza. Confesso que, sentindo novas forças e energias daquele sangue "fantástico", minha cabeça já era outra, de forma que me interessei em esticar meus olhos nas curvas corporais da jovem…

Ao ter alta, vim prá casa e fiquei meditando no ocorrido. Dias depois, fui lá no Banco de Sangue e consegui descobrir quem foi o doador daquele sangue que tomei. Anotei o nome e endereço e fui procurá-lo ali na Av. Major Dario Alves de Carvalho num sábado de manhã. Bati palmas e me informaram que ele estava trabalhando na estação ferroviária. Desci e topei com ele carregando um caminhão com sacas de café, um mulatão forte e sorridente. Apresentei-me a ele como médico e, não sei por que, fiquei inibido de dizer que tinha tomado o sangue doado por ele. Falei apenas que, em nome da Santa Casa, estava agradecendo pela doação de sangue que ele havia feito. No punho dele, vi que ele usava uma daquelas pulseiras de controle da pressão alta, em moda na época.

Entrei no carro, desci até à Charutaria Paratodos, comprei uma pulseira daquelas bem novinha, mandei gravar o nome dele e levei prá ele de presente. Ele me agradeceu e eu lhe disse que o sangue dele era poderoso, de forma que eu retornaria daí a uns trinta e poucos anos para lhe pedir uma nova doação de sangue. Aí ele ficou curioso e eu acabei contando que o sangue dele havia servido não somente para salvar minha vida, como também, em poucos minutos, me fazer ficar empolgado com as curvas da servente do hospital…

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