Tempo passado

Luiz Carlos Bedran

Fazia tempo que não ia para lá, fazia tempo que não voltava para aquela pequenina cidade onde nasceu, mas onde ainda remanesciam alguns antigos membros da família. E que ultimamente apenas ia lá para prestar a última homenagem aos idosos tios e tias, que, embora numerosos, foram-se, inevitavelmente acabando, um a um.

Anos atrás viajava com seu companheiro, seu próprio pai, que depois das conversas com o restante da família e com os velhos amigos da juventude, nunca voltava para casa sem levar um garrafão de pinga da boa, daquelas de alambique. E que depois a consumia aos poucos toda vez que morria um amigo, numa derradeira libação em sua homenagem. Quase no fim da vida o velho, filosoficamente, já não dava conta dos brindes de recordação, pois as homenagens ultimamente eram tantas e tão freqüentes embora moderadas que a família não podia deixar de ficar preocupada com sua saúde. Era um atrás do outro, ou parente ou amigo que ia desaparecendo, sumindo aos poucos do mapa.

Depois foi a própria vez dele. No jogo de xadrez em que se joga contra a Parca, nesse jogo, que é o da vida – e também o da morte – a única forma, não a de conseguir vencer – mesmo porque já se sabe de antemão que o jogo estará perdido – mas apenas de sobreviver, é de procurar protelá-la ao máximo possível. É por isso que não se deve haver pressa nesse longo embate.

Aí vão caindo os peões, os amigos e conhecidos, pouco a pouco. Depois, as peças mais importantes, muito embora, como não se desconhece, todas são importantes, dependendo do transcorrer do jogo e do tempo: os avós, o pai, a mãe, os tios, os primos, o sogro, a sogra. Um jogo normal, quase que rotineiro, mas que pode, de uma hora para outra, repentinamente mudar: a morte de um filho, por exemplo.

No final, se o jogo não for interrompido de repente, sobra o rei, o homem, o sobrevivente, o último dos moicanos, aquele que, pretensiosamente, se julga imortal, porque entende que seria protegido por Deus. Mas, contra ela não há escapatória, mesmo porque nem precisa de coadjuvantes. Somente resta ela, a rainha, soberana, fria e implacável, com aquele seu sorriso irônico e gozador, a esperar, pacientemente, vencer o contendor pelo cansaço. E, por mais que se tente fugir, ela vai atrás até o final, até o jogo acabar.

Assim, como seu companheiro de viagem, que também se foi, ele acabou sozinho. E ele foi para lá, para aquela cidadezinha, prestar a última homenagem àquela mulher humilde, que passou a vida fazendo crochê, a fazer quibes deliciosos, que viveu uma vida simples, sem ambições. Mas fez questão de ir só, fez questão de, já na própria ida e, depois, na volta também ir velando aquela velha senhora. E naquela viagem, que já não era mais de trem, como no passado, foi recordando aquele tempo antigo.

Como aquele personagem do “Cine Paradiso”, no retorno às suas origens, daquela pequena cidade italiana, para velar um velho amigo; assim como também o senador, interpretado por James Stewart, no faroeste de “O Homem que Matou o Facínora”, que, da capital, se dirige especialmente para velar seu velho companheiro, o ator John Wayne, um obscuro cowboy, mas que, graças a ele, graças a um episódio memorável, foi que aquele advogado, logo no início de sua carreira, tornou-se um importante político.

E para não desmerecer seu antigo companheiro dessas viagens, e em honra também à sua memória, não teve como não deixar de seguir o seu exemplo, ao retornar à casa: brindar, com aquela forte bebida, o tempo passado.

Mas que não foi perdido.

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