Rosa Godoy (*)
Ao entrar no avião, elas ouviram: “Boa noite, meninas”. Ao invés do “Boa noite, senhoras”, plástico, empoado e frio de sempre, desta feita, além do conteúdo diferente, o usual cumprimento veio acompanhado de um largo e gostoso sorriso, quase um gracejo. Ora, por tratar-se de duas senhoras, o “meninas” só podia significar que, no mínimo, padrões estavam sendo quebrados, algo estava sendo feito diferente (e melhor) do que o usual. E foi justamente isto que chamou a atenção: o diferente, a ruptura de um dado padrão, de algo que costuma ser feito sempre de uma mesma maneira, ao ensejo de uma dada regra, ao sabor de um dado conjunto de normas criadas para reger determinadas ações, no caso, a recepção dos passageiros pelo comandante e pela comissária à porta da aeronave. Tanto que a resposta, também divertida, foi também fora do padrão. Ao invés de “Boa noite”, como diria usualmente, uma delas respondeu: “Boa noite! Se chamar de menina de novo, nunca mais viajo com outra companhia aérea”, reagindo positivamente à brincadeira e acrescentando a sua parcela de humor à situação. Sem dúvida, a viagem foi mais agradável.
Ao contrário do que se pode pensar, o nosso agir (no caso, o agir profissional do comandante e o agir cotidiano da passageira) não é espontâneo e desvestido de lastro. Ele incorpora três dimensões: o saber, o saber-ser e o saber-fazer. O saber corresponde ao conjunto de conhecimentos que estão embutidos nos nossos comportamentos e ações. O saber-fazer corresponde às habilidades que desenvolvemos ao longo da vida para executar as ações e o saber-ser às atitudes e valores que estão por trás de tudo o que fazemos. O saber-ser corresponde, em última instância, ao componente ético e moral que embasa a vida e pode expressar-se tanto positiva como negativamente por meio de comportamentos que correspondem ao que a sociedade em que vivemos considera aceitável ou inaceitável, certo ou errado, de acordo com os princípios éticos e morais que regem a vida social.
Na situação citada, o fazer do comandante e da passageira regeram-se pelo princípio de que a vida torna-se melhor quando divertida e alegre incluindo-se a parcela de vida que dura uma viagem aérea. Pode-se dizer que foi este o saber-ser que embasou o saber e o saber-fazer de ambos – profissional de um, cotidiano da outra. Ao interagirem desta maneira, tornaram-se melhores, mais humanos, sem ultrapassar os limites morais (as regras e normas que regem os comportamentos humanos) que devem nortear as relações entre tripulação e passageiros no nosso meio.
A moral se estabelece a partir de valores que são os princípios que fundamentam a consciência humana. Estão presentes em todas as religiões e filosofias e sociedades, independentemente de raça, sexo ou cultura. Fazem parte da condição humana e são inerentes à relação entre os sujeitos. Quando exercitados, possibilitam a convivência, facilitam a vida em comum e enaltecem a condição humana, tornando o mundo melhor para se viver. Virtude é a força que leva o sujeito a agir ou que pode levá-lo a agir. Assim, a virtude do homem, é querer e agir humanamente. Esse exemplo, que tem origem grega, diz o essencial: virtude é poder, mas poder específico para realizar alguma coisa. A virtude de um ser é o que constitui seu valor ou, em outras palavras, sua excelência própria: a boa faca é a que corta bem, o bom remédio é o que cura bem, o bom veneno é o que mata bem, o bom homem é o que vive bem com os seus semelhantes.
Porém, valores e virtudes não devem ser praticados apenas em alguns momentos da vida. Como dizia Aristóteles, “uma andorinha, só, não faz verão” querendo dizer que o agir virtuoso não é ocasional e fortuito, mas deve se tornar um hábito, fundado no desejo de continuidade e na capacidade de perseverar no bem. A verdadeira vida moral se condensa na vida virtuosa. É no cotidiano que mostramos o quanto somos capazes de viver uma vida virtuosa e não apenas fazendo o bem ocasionalmente.
O saber-ser incorpora virtudes e valores, e estando transversalmente em todas as nossas ações, revela quem somos e o nosso modo de andar a vida. Se passamos incólumes por ela ou se permitimos que mesmo as pequenas experiências possam nos tornar melhores, são opções que se colocam à nossa disposição. Assim, se “quem sabe faz a hora, não espera acontecer” não seria desejável aproveitar para construir a felicidade a partir da conjugação de pequenos momentos felizes e não apenas das grandes alegrias?
Por menor que tenha sido, essa situação mostra como uma frase e um sorriso podem fazer diferença, acrescentando valor ao cotidiano atribulado do mundo contemporâneo em que vivemos. E elas estão sempre ao nosso alcance, basta prestar atenção e vivê-las na sua plenitude. Sabendo ser assim, poderemos finalmente compreender, por exemplo, que há muita vida debaixo das areias escaldantes do deserto e que a beleza do céu também está em cada estrela…
(*) É Professora da USP, Enfermeira e colaboradora do JA.