Luiz Flávio Gomes (*)
A ISTO É n. 1702, de 15.05.02, p. 44 (Madi Rodrigues) noticiou: Izabel tem 38 anos. É empregada doméstica. Subtraiu do seu patrão uma cebola, uma cabeça de alho e um tablete de caldo de carne. Total da subtração: R$ 4,00. O delegado de polícia (Márcio Barros de Campos) lavrou a prisão em flagrante e disse: “Ela vai responder por furto sim. O flagrante está perfeito”.
O que é insignificante não deve ser resolvido pelo Direito penal. O furto de uma cebola e uma cabeça de alho só é formalmente típico, não, porém, materialmente. Está, portanto, fora do Direito penal. Deve ser solucionado com o direito trabalhista, civil etc., jamais com o instrumento mais terrível com que conta o sistema de controle social.
A prisão em flagrante de Izabel é fruto de um equívoco. Demonstra de outro lado que o ensino jurídico no nosso país (e particularmente o ensino do Direito penal) precisa avançar. O homem já chegou à lua, o mundo se globalizou, a planeta se integrou inteiramente pela Internet e nosso Direito penal continua o mesmo da Segunda Guerra mundial. O delegado agiu da forma como agiu porque aprendeu na faculdade ser um legalista positivista e napoleônico convicto. Esse modelo de ensino jurídico (e de Direito penal) já morreu.
Mas se já morreu, porque o delegado continua lavrando flagrante no caso do furto de uma cebola? A resposta é simples: morreu mas ainda não foi sepultado! O modelo clássico e provecto de Direito penal é como elefante: dar tiros nele é fácil, difícil será sepultar o cadáver.
O delegado, o juiz e o promotor que seguem o velho e ultrapassado modelo de Direito penal (formalista, legalista), no máximo aprenderam o Direito penal do finalismo (que começou a ficar decadente na Europa na década de 60 exatamente por ser puramente formalista). Apesar disso, ainda é o modelo contemplado (em geral) nos manuais brasileiros e é o ensinado nas faculdades de direito.
Nosso ensino jurídico (no âmbito penal) está atrasado em mais de três décadas. Depois do finalismo de Welzel três novas etapas de evolução no delito já ocorreram: (a) a teoria racional-final de Roxin; (b) a teoria funcionalista sistêmica de Jakobs; (c) teoria constitucionalista do delito (de tudo isso estou cuidando no meu curso de Direito penal pela Internet assim como no curso ao vivo sobre teoria do delito, que será ministrado em São Paulo no segundo semestre de 2002 cf. www.estudoscriminais.com.br).
No que se relaciona com a admissibilidade do princípio da insignificância no Direito penal já não há o que se discutir. Dos fatos mínimos (dos delitos de bagatela) não deve cuidar o juiz (minina non curat praetor). Esse importante princípio, já aplicado no tempo do direito romano e recuperado depois da segunda guerra por Roxin (Kriminalpolitik und Strafrechtssystem, em JUS, 1964, p. 373 e ss.), vem sendo reconhecido amplamente pelos juízes e tribunais, especialmente nos delitos de descaminho, furto etc.
Conseqüências práticas: ninguém pode ser preso em flagrante por fato absolutamente insignificante (por ser atípico). Ninguém pode ser processado por isso. O correto, portanto, em razão da atipicidade penal do fato, é arquivar o caso logo no princípio. O delegado faz um simples boletim de ocorrência e o promotor pede o arquivamento. E se o promotor denunciar ? Cabe ao juiz rejeitar a denúncia, com base no art. 43, I, do CPP (“a denúncia ou queixa será rejeitada quando o fato narrado evidentemente não constituir crime”).
Tipo legal não é a mesma coisa que tipo penal. Subsunção formal não é adequação típica material. O Direito penal já não se coaduna com a dogmática formalista do século XX. Por força do princípio da intervenção mínima nem toda ofensa ao bem jurídico merece sanção penal. Os critérios de política criminal (intervenção mínima, por exemplo) fazem parte do Direito penal (Roxin). Esse é o novo Direito penal, que se mostra antagônico frente ao Direito penal formalista e literalista do século passado.
Duas são as hipóteses de insignificância no Direito penal: (a) insignificância da conduta; (b) insignificância do resultado.
No delito de arremesso de projétil (CP, art. 264: “Arremessar projétil contra veículo, em movimento, destinado ao transporte público por terra, por água ou pelo ar: pena detenção de 1 a 6 meses”), quem arremessa contra um ônibus em movimento um bolinha de papel pratica uma conduta absolutamente insignificante; no delito de inundação (CP, art. 254: “Causar inundação, expondo a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem: pena reclusão de 3 a 6 anos, no caso de dolo, ou detenção de 6 meses a 2 anos, no caso de culpa”), quem joga um copo d água numa represa de 10 milhões de litros de água pratica uma conduta absolutamente insignificante.
Nessas hipóteses, o risco criado (absolutamente insignificante) não pode ser imputado à conduta (teoria da imputação objetiva em conjugação com o princípio da insignificância). Estamos diante de fatos atípicos.
No delito de furto (CP, art. 155), quem subtrai uma cebola e uma cabeça de alho, que totaliza R$ 4,00, pratica uma conduta relevante (há desvalor da ação) mas o resultado jurídico (a lesão) é absolutamente insignificante (não há desvalor do resultado). Também nessa hipótese o fato é atípico. Não há incidência do Direito penal.
Mas ficaria impune o autor do fato insignificante? Não. Deve recair sobre ele todas as sanções civis (indenização), trabalhistas (despedida do empregado, quando o caso) etc. O que não se justifica é a aplicação do Direito penal. Não devemos utilizar o canhão para matar um passarinho!
(*) Doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri e Diretor-Presidente do Centro de Estudos Criminais-Cursos ao vivo pela Internet.