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Palestra do Ministro Dr. César Peluso Ministro do Supremo Tribunal Federal

Jurisprudência Penal em Matéria Constitucional

“Todos os jovens acadêmicos de qualquer nível com certeza já ouviram falar várias vezes dos direitos e garantias fundamentais e dos princípios constitucionais. Assim, não cabe relembrar o valor desses princípios sobretudo do seu alcance teórico. Vou tentar transmitir a idéia da efetividade desses princípios, isto é, de como é que esses princípios na prática se concretizam na vida de um país, na vida de uma sociedade e vou tentar fazê-lo partindo do trabalho de interpretação das decisões do Supremo Tribunal Federal a quem a Constituição atribui a guarda do seu espírito e do seu sentido. Vou examinar dentre eles um princípio, que eu considero um princípio fundamental, os brasileiros não tem esse hábito, mas os portugueses tem o hábito de usar uma palavra muito interessante que é charneira, que é o gonzo da porta, e eles quando se referem a um princípio capital, eles chamam esse princípio de charneira, porque em torno dele giram outros princípios e eu quero falar de um desses princípios, que é o princípio da proteção dos bens jurídicos, isto é, o princípio da proteção daquilo que o Direito considera um dos valores mais importantes da vida social, deste princípio decorrem outros princípios determinantes a construção de um Direito Penal que seja conforme os ditames de um Estado Democrático de Direito, construído sob o conceito da dignidade das pessoas. A questão da lesividade, todos nós entendemos o que seja lesividade, é a capacidade de ser ofendida alguma coisa ou alguma pessoa, é questão que nos remete à análise jurídico-constitucional e que na pena de um professor português Jorge Figueiredo Dias que diz que, um bem jurídico político criminalmente vinculante existe ali e só ali onde se encontra refletido no valor jurídico constitucionalmente reconhecido em nome do sistema social total e deste modo se pode afirmar que preexistiu, existiu antes do ordenamento jurídico, o que por sua vez significa, que entre a ordem jurídico -constitucional e ordem jurídico-penal dos bens jurídicos tem por força significar uma relação de mútua referência, a ordem constitucional e a ordem jurídico penal.

E nesse ponto observa-se que se a constituição não posar desse pensamento e exigência da lesividade seria todavia ilógico entender que admita privações de um bem constitucionalmente primário se não é para evitar ataques a bens de nível igualmente constitucional. “A liberdade constitui um dos principais atributos da dignidade da pessoa humana, e sua inviolabilidade está consagrada pela Constituição, imediatamente depois da declaração de inviolabilidade da vida, a conformação de um Estado adotado pelo texto constitucional centrada na dignidade da pessoa humana, a hierarquia atribuída a liberdade individual de seus seios e conseqüente princípio da legalidade, nos conduz a irremediável conclusão que a sanção penal, a pena sobretudo a restritiva de liberdade, aquela que atinge um dos bens jurídicos fundamentais só se justifica onde haja ofensa ao bem jurídico, seja esta ofensa por meio de uma ameaça, seja esta ofensa uma lesão. Daí a proibição de um Direito Penal que possa servir a fins éticos ou morais, daí a proibição da criminalização de comportamentos que demonstrem presumíveis tendências desviadas, meras atitudes interiores, em outras palavras a proibição da incriminação pura e simples da desobediência, daí que igualmente os comportamentos incriminados devem apresentar-se com o potencial de lesão, do ponto de vista da ameaça ou sob o ponto de vista da lesão ao bem jurídico tutelado vedando-se portanto a antecipação da punição da tutela penal para momentos anteriores desta lesão, ou desta ameaça e finalmente a proibição da aplicação de normas incriminadoras, agora já sobre uma perspectiva do caso concreto, quando a ofensa, seja ameaça ou seja lesão de tão diminuta não se mostre proporcional a restrição da liberdade por via da aplicação da pena, é o que se denomina o princípio da insignificância que nós já sabemos é uma causa de excludente da conduta, mas todos esses são princípios muito conhecidos, mas importa que sobretudo revê-los em alguns dos trabalhos do Supremo Tribunal Federal, que é encarregado de nivelar pela inteireza desses princípios. Um exemplo claro ao meu ver desta aplicação do princípio da proteção dos bens jurídicos se encontra no artigo 226, º 2 do Código Penal. Essa norma diz, a pena é aumentada de se o agente é casado. A causa de aumento dessa pena foi trazida pelo código penal ao tempo que a grande maioria das jovens e das senhoras não tinham nascido ainda, e conforme observou um grande penalista da época, talvez o maior dos maiores Nelson Hungria, à luz da regra constitucional que então emergia da preservação do vínculo conjugal, a razão da majorante está, dizia ele, na impossibilidade por parte do agente de reparar o mal pelo subsequente matrimônio. A especial agravante subsiste ainda no caso de ser o agente desquitado, pois o desquite não rompe o vínculo conjugal.

Sucede que a partir de 1977, com a inclusão constitucional do desfazimento do vínculo conjugal, o simples fato do agente ser casado já não impede por si só a reparação do mal pelo casamento, com isso tecnicamente pode-se dizer que desapareceu a ratio legis, ou seja, a razão jurídica dessa majorante. A questão em que se propõe à análise é, continua a viger a norma com a mudança do sistema constitucional que passou a dividir separação e divórcio: receio que não, relativamente ao bem jurídico tutelado pelas normas incriminadoras descrito nos artigos 213 a 222 do Código Penal, ou seja, a liberdade sexual, o fato de ser o agente casado não implica aumento do dano causado a vítima, isto é, não significa uma ofensa mais grave ao interesse tutelado ou na imposição do Código de 1940, na impossibilidade de repará-lo, aliás essa impossibilidade de repará-lo que faria diferença na verdade é o resíduo de uma concepção eminentemente patriarcal centrada na idéia de que a reparação de um crime de estupro por exemplo se afastaria com o casamento do agente com a vítima. Por outro lado, nas demais hipóteses de causas de aumento de penas previstas nessas mesmas normas, seja o crime, por exemplo, praticado por um concurso de duas ou mais pessoas, ser praticado com quem exerce a título de autoridade sobre a vítima portanto, os casos de ascendente pai adotivo, padrasto, irmão, tutor, etc.., que guardam uma relação com o objeto jurídico tutelado, que é a liberdade sexual da vítima, assim porque a agravam o dano causado a vítima em uma primeira hipótese, por quem praticado o delito, tem especial dever de proteção e vigilância relativamente ao ofendido, envolve um abuso da relação de confiança oriunda do vínculo familiar, do vínculo civil, do vínculo profissional e coloca a vítima portanto numa situação de desvantagem o que se entende perfeitamente.

Tais nexos lógicos e normativos entre o bem jurídico tutelar, a liberdade sexual e a causa do aumento da pena já não se encontram no aumento da pena prevista por agente casado cuja a condição por si mesma não aumenta o dano causado a vítima, não corrompe nenhum dever de proteção e vigilância, nem o abuso da relação de confiança, podia se imaginar que esse aumento da pena, com o propósito de tutelar imediatamente o dever de fidelidade conjugal, não, aumenta-se a pena porque com isso se viola também outro bem jurídico civil dever de fidelidade conjugal, é muito pobre por várias razões, em primeiro lugar quando o crime supõe necessariamente conjunção carnal configura-se tecnicamente em concurso formal o crime de adultério, e já a tutela de forma autônoma a violação do dever de fidelidade, não se revelando por isso dos crimes contra a liberdade sexual, como própria para a proteção, por outro lado se entendesse a punição do autor ela seria sempre superior a própria pena prevista para o crime de adultério que vai de detenção de 15 dias a 6 meses, o que conduz absurda situação na qual a circunstância de um crime conduziria a uma pena maior do que aquela prevista para a pratica do crime em si, por outro lado, alguns dos crimes aos quais se aplicaria essa causa de aumento da pena não pressupõe violação do dever de fidelidade conjugal, como por exemplo o crime de assédio e a corrupção de menores, demonstrando portanto que não é a tutela da fidelidade conjugal que esta a base racional do aumento da pena. Um autor cujo o nome prefiro não citar, explica que a par da impossibilidade de reparar o dano pelo casamento, essa causa de aumento da pena teria sido instituída diz ele, desde a consideração ao fato que o agente casado mais do que o solteiro tem o dever de ser o guardião dos bons costumes, em nome dos interesse da sociedade da qual a sua própria família como a da vítima é parte integrante.

Primeira objeção é que a entidade familiar que recebe uma particular proteção constitucional não se limita àquela oriunda do casamento, entidade familiar é hoje instituição que abarca não apenas o casamento, uma união estável, que até o grupo formado por qualquer dos pais e seus descendentes, assim se fossem em atenção a integridade da família, que se exigisse do agente ser o guardião dos bons costumes, certamente essa norma hospedaria uma insustentável discriminação e como tal não seria recebida pela constituição, poderia então o legislador instituir uma causa de aumento da pena com o fundamento de ser o homem casado guardião dos bons costumes, em outros termos o simples fato do agente ser casado e praticar crimes contra liberdade sexual de terceiros, justificaria maior por conta do vínculo conjugal, depois ampliação na restrição de sua liberdade, como o atentado violento ao pudor praticado por um agente solteiro ou divorciado ou viúvo, seria menos grave ou menos reprovado sob o ponto de vista da lesão sofrida pelo bem jurídico tutelado pela liberdade sexual da vítima, a questão nos remete a um problema grave que é a separação entre moral e direito e especialmente entre moral e direito penal, que é um legado do iluminismo.

A confusão entre moral e direito penal, é bom lembrar é que esteve a raiz de notórias aberrações, como a criminalização do homossexualismo, aliás foi exatamente em torno da confusão estabelecida entre direito penal, moral e religião, que foi elaborado a chamadas teorias, hoje largamente desenvolvida em todos os parâmetros do mundo civilizado. O resultado dos estudos sobre o tema do bem jurídico na Alemanha por exemplo, foi em grande parte ocasionado pelos esforços da reforma dos libidos sexuais, isto é, de uma matéria que de qualquer maneira tornou-se clássicos do interesse moderno sobre os limites do interesse penal, mas também dos delitos contra a religião, setor este não menos sintomáticos de demonstração do nível de circularização avançado pelo instrumento penalístico. A concepção de separação entre direito e moral, o direito segundo esta tese não é não deve ser, pois a razão jurídica não o permitiria e nem a razão moral pretende ser o instrumento reforçado da moral, o seu objetivo não é o de oferecer um braço armado a moral, ou melhor dada a existência de várias concepções morais na sociedade, a uma determinada moral, o direito tem o dever diferente mais de assegurar a paz e a convivência civil, impedindo os danos que as pessoas podem causar umas as outras sem interpor sacrifícios inúteis ou insustentáveis.

Constituído-se a República do Brasil um Estado Democrático e de Direito fundado na dignidade da pessoa humana, nas crenças, na consciência e na opinião à medida que não prejudiquem direitos alheios não podem o direito positivo, o direito legislado assumir e impor coativamente os cidadãos determinada concepção moral e de bons costumes, nem muito menos fazê-lo sob ameaça de restrição ao direito fundamental como é a liberdade visual, não devem diz um grande penalista brasileiro num Estado de Direito democrático constituir valores penalmente tutelados ou bem jurídicos penais, convicções de cunho moral ou religioso punindo-se por exemplo o homossexualismo ou a prática da quimbanda. Princípio de indiscutível caráter inconstitucional como direito a liberdade moral, a livre manifestação de pensamento, o princípio das tolerância ideológica e da tutela das minorias impede que se transforme o direito penal de um Estado democrático em tutor da virtude, desta forma impõe-se uma limitação da repressão penal, somente aquela infrações assim chamadas moralidade que sejam de fato socialmente danosas e que de qualquer maneira violem o direito a auto determinação sexual. De longa data sustentava-se a punição de conduta enquanto simplesmente imorais dentre outras razões porque a própria democracia é a tolerância, estado de direito enquanto bem fundado na soberania popular não pode perseguir o aperfeiçoamento moral dos cidadãos adultos, mas deve limitar-se a segurar as condições de uma convivência pacífica, de tal perspectiva, não só não pode o direito predefinir quais sejam os bons costumes e como se pudera não seria dado eleger a pessoa casada exclusivamente como guardiã de tais valores morais, impondo de maior restrição a liberdade pelo aumento da pena, quando praticasse crimes embora aqueles que visam proteger a liberdade sexual, ou seja, maior reprovabilidade fundada apenas pelo grau teórico da ação do agente casado não encontraria apoio no nosso ordenamento, por outro lado, se é verdade que ordenamento jurídico do estado democrático que tem por vocação a indulgência para com as diferenças, o que alias uma das qualidades mais festejadas da cultura e da alma brasileira, somente pode ser privada para proibir confortamentos que prejudiquem terceiros (..) daí se conclui pela incompatibilidade da causa de aumento de pena que estamos examinando com tais princípios, porque o fato do agente ser casado não resulta em maior prejuízo a vítima dos crimes contra a liberdade sexual. Em suma, não implicando maior autenticidade ao bem jurídico, a demais tendo perdido com a possibilidade do divórcio a própria razão normativa, a razão que estava a base da norma a causa do aumento de pena aparece num mero julgamento ético desfavorável ao agente casado tarefa que certamente não incube ao direito e muito menos ao direito penal num estado democrático, foi por estas razões que num julgamento de uma causa de um habeas corpus 82.959 afastei o aumento de pena que pesava sobre o autor casado condenado pela prática de atentado violento ao pudor.

Em suma, o direito penal não deve deixar de levar em consideração as regras sociais na análise da conduta criminosa praticada pelo agente, sob pena de afastar o princípio constitucional maior que é a garantia da liberdade.

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