Pai dá o começo

Inspirei-me num texto, com título semelhante, de autor desconhecido, que me levou ao passado. Recordação da infância.

Quando pegávamos uma tangerina para descascar, corríamos para o pai e pedia:

"Pai dá o começo".

O que queríamos era que ele fizesse o primeiro rasgo na casca, o mais difícil e resistente para mãos de uma criança. E ele acabava descascando a fruta inteira.

Em outras vezes tirávamos o restante da casca a partir da primeira abertura que ele havia feito.

Acho que pedíamos para ele dar o começo só pela satisfação de vê-lo atender nossa vontade.

Meu pai morreu faz tempo. Precocemente. Mas tive a satisfação de acompanhá-lo dando o começo. Não só na tangerina. Mas, apontando um lápis com o canivete. Colando as folhas de papel de seda para uma pipa estrela. Enrolando o barbante no pião de madeira. E até segurando o nosso bode Raimundo para eu montar. O nome homenageava o amigo que nos deu o caprino de presente.

Sinto saudade da companhia do meu pai formado na escola da vida (e que vida) pelo menos para trocar ideias e "começar o começo" das eventuais cascas duras que a vida nos impõe.

Hoje, as nossas "tangerinas" são outras.

Precisamos "descascar" as dificuldades do trabalho, os obstáculos de relacionamentos, as maledicências fertilizadas na inveja, os problemas de vários núcleos, a torcida incessante para a felicidade dos filhos e seus descendentes. Os rancores. Traumas, dificuldades e até dúvidas e conflitos que nos afligem nos desafios diários. As tangerinas em certas ocasiões transformam-se em abacaxis.

Era um franciscano e como tal um conformado.

Com o passar dos anos, todos aprendem (ou pensam que sabem) descascar suas tangerinas, sem ajuda.

Eu gostaria que meu pai ainda vivesse para me ajudar a descascar minhas tangerinas. Pelo menos dar o começo.

Com a idade a vida nos ensina a descascar, sem ajuda, as durezas de cada dia.

Aprendemos a fazer o que temos que fazer hoje.

Uma tangerina por dia.

Ontem é história. Amanhã é incerteza. Hoje é uma dádiva. Infeliz quem não aprendeu a descascar suas "tangerinas" sem auxílio de terceiros.

Como dizem os alicantinos ontem é um cheque usado, amanhã é uma promissória. Hoje é o dinheiro que cada um tem para gastar da melhor forma possível que lhe agrade e contente os que lhe amam. Aprendemos a viver a cada momento. Sem pressa. Aproveitando o "agora". Não devemos ser duros conosco. Não temos a obrigação de ser perfeitos. Nem exigir perfeição de quem quer que seja. Muito menos descascar as tangerinas de todo mundo.

Vale a experiência. Na vida não se deve perder a oportunidade de uma reconciliação entre pessoas amadas. Nem sofrer por coisas que não chegam a acontecer.

Pensar mais com o coração do que com a cabeça. Afastar o ódio e a amargura que só causam danos à saúde. Que só o amor supera tudo e que o medo e o orgulho só nos fazem o mal.

Até morrer, temos apenas uma obrigação: a de ser feliz. E colaborar para a felicidade do próximo.

Agindo assim descascaremos, com facilidade, não só as tangerinas, mas os abacaxis da vida.

jbgalhardo@uol.com.br

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