Os que vão morrer

Caetano Lagrasta

De leitor que se diz preocupado com o ritmo da violenciam o JA recebe pedido para repercutir comentário-debate (2/04/03) publica na página de debates da Folha de São Paulo.

Os que vão morrer te saúdam, ó grande César.

Você que, com certeza, conhece Marcola, Geléião, Césinha, Beira-Mar e outros, mas que, também com certeza, ainda não sabe se eles são os cabeças do crime organizado, os mandantes dos assassinatos em nosso Estado, diga-nos: essa turma que é presa ou morta nas favelas e morros, nos botecos da periferia, nos bairros elegantes, na porta das escolas, ao distribuir ilusão em pó ou em pedra, representa mesmo “quedas” primordiais nos quadros e na estrutura das organizações criminosas?

Serão esses rebotalhos, esses farrapos, os responsáveis pelo fluxo internacional de entorpecentes, pelo contrabando de armas, pela movimentação financeira de milhões de dólares?

É certo que vivemos um momento de estupor e medo, igual àquele vivido pela Itália, seus juízes e familiares, a partir dos anos 50, assassinados que foram, para mais de milhar. Mas, ainda que não se comparem sistemas jurídicos, lá o Ministério Público funciona como se magistratura fosse, e o Poder Judiciário, seus membros e os demais auxiliares da Justiça não estão – como aqui – submetidos ao acúmulo de inquéritos e processos, ou arrochados por uma Lei de Responsabilidade Fiscal que trata igualmente os Estados que nada têm em comum, salvo a própria responsabilidade.

A autonomia financeira (prevista na Constituição), aqui, é ilusória e amesquinhada, mas é lógico que isso nada tem a ver com a violência ou a barbárie, pois já conseguimos um juiz assassinado.

Foi o crime organizado? Foi vingança de preso menos excelente? Pode ter sido qualquer coisa, mas quem deve explicações ao público em geral, aos familiares do morto e as outros lutadores, sobre qual a razão de um único preso movimentar todos os Estados da Federação, temerosos de sua presença, desculpe-nos, é você César, são os governantes, não os cidadãos.

E, queira ou não, o exemplo está dado e, com certeza, acabará por infectar outras espécies de processo (invasão de terras, licitações públicas, crimes contra o meio ambiente, construção civil, remoção de lixo tóxico, crimes contra o consumidor etc.), com sua torpe ameaça, sempre que alguma das partes se sentir prejudicada, seja ela criminoso excelente ou ímprobo administrador. Para estes (até o delinqüente já percebeu) existe outra lei, melhor interpretada, que lhes permite melhor defesa e quase sempre atingir a impunidade ou a prescrição dos crimes.

Diante disso, o facínora busca se filiar a qualquer espécie de “organização” que lhe dê status, segurança, melhores advogados e, lógico, algum dinheiro no bolso. Assume novas funções na trajetória da marginalidade, tornando-se, quando muito, amanuense das tais organizações, encarregado de, utilizando-se do dinheiro sujo do crime (tóxico, armas, jogos de azar, prostituição etc.), entregá-lo ao corrompido.

Aos altos escalões, com certeza, não pertence, não sendo o responsável pela aplicação (“lavagem”) daquele dinheiro, que financia a corrupção de policiais, aplicado nas campanhas eleitorais, em operações diamante etc., sem ostentar a capacidade e a sutileza mercadológica necessárias para encobrir a utilização lícita do produto da atividade criminosa.

Dessa forma, os dirigentes das macroorganizações criminosas, globalizadas, conseguem respeitabilidade e penetram nas malhas do tecido social “legal”, através da oferta de “crimes de serviço” do tipo transporte ilegal de lixo tóxico, associação à indústria alimentar, ou do lazer, à construção civil, às licitações públicas etc.

Lembremo-nos, César, de que o palavrar finório – ainda que veemente – pode servir para enterrar os mortos, nunca para restituí-los à vida, seja como juiz, pai de família, colega; ou fazer-lhes justiça.

Ave, César!

Caetano Lagrasta Neto, 59, é juiz do Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo e secretário-executivo do Centro Brasileiro de Estudos e pesquisas judiciais.

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