O vendedor de camomila

João Baptista Galhardo

Num sábado à tarde terminara de ajudar minha mãe lavar o piso da casa, quando chegou meu tio, seu irmão, vice-caçula, casado, embora muito jovem, montado na sua bicicleta de corrida de alumínio, cuidada com muito zelo. Vinha contar para ela as proezas de sua linda filha de poucos meses de idade. Não entrou. Permaneceu sentado na bicicleta com um pé no degrau da porta. Enquanto conversavam, eu admirava o seu veículo de guidão baixo. Perguntou-me se queria dar uma volta. Até que tentei, mas pelo meu tamanho de nove anos de idade, não alcançava os pedais nem a direção. Ele chegou a me empurrar por uma distância, sentado no selim. Despediu-se. Foi embora acenando com a mão direita: “cresça que eu te ensino a andar”. Entardecia. Fui para o quintal, na horta, colher camomila em flor para vender em maços na feira do dia seguinte. Naquele tempo não havia ervas desidratadas em saquinhos. Eram vendidas ao natural. A hortelã, a erva-doce, a camomila, poejo, quebra-pedra, chapéu-de-couro, carqueja, etc. Os maços de camomila eu colocava numa cesta de bambu coberta com um pano úmido. No dia seguinte acordei quatro horas da manhã, ainda frio e escuro. Coloquei a cesta nas costas e fui para a casa do meu avô materno que era feirante. A feira, aos domingos, era no Largo da Câmara (Praça Pedro de Toledo). A praça tinha muitas árvores e a iluminação se fazia por postes de ferro trabalhado com um lustre pontiagudo e com fios embutidos. As bancas, na sua maior parte de japoneses, com alguma exceção como a do meu avô que era espanhol, formavam um círculo. Quando cheguei na sua casa já o encontrei fazendo o café que ele tomava com um sanduíche muito extravagante. No meio de duas fatias de pão caseiro ele colocava duas colheres de sopa de pimenta malagueta curtida no óleo e sal. Depois arreava a sua égua, de nome princesa, entre os puxadores da carroça e íamos para a feira. Nós dois na “boléia”. A égua era totalmente branca, muito bonita, lavada e escovada. Há muitos anos com meu avô, fazia parte da convivência da família. Principalmente para ele que não colocava, sequer, o bridão em sua boca para não machucá-la. Chegando à praça a égua era liberada dos arreios e ali ficava quietinha, às vezes, saboreando umas espigas de milho até ao meio dia, hora de fechamento da feira. Ele armava a sua banca e eu pegava uma carona num canto para vender minha camomila. Naquele domingo chegamos às cinco horas, mais ou menos. Ainda estava escuro. De repente, quase seis horas, as luzes apagaram. Todos quiseram saber da razão. Um dos primeiros compradores disse que na esquina da rua Padre Duarte com a D. Pedro II, houvera um acidente. Um eletricista havia sido colhido, no trabalho, por um transformador de alta tensão, tendo morte instantânea, ficando completamente desfigurado. Um queimado humano onde não se distinguia cabeça, tronco e membros. Para aguardar o retorno da energia, fui com meu avô ao local, como simples curiosos. O que restara do corpo ainda estava ali, à vista, no chão com alguma fumaça. Até que uma pessoa o cobriu com um lençol. Alguém perguntou sobre o nome da vítima. E quando disseram… meu avô segurou minha mão de tal forma que dava para perceber as batidas do seu coração. Tratava-se para nosso espanto daquele meu tio, que no dia anterior queria me ensinar a andar de bicicleta. Irmão da minha mãe e filho do meu avô que ali estava comigo. Aquele homem de face rosada e cabelos brancos como algodão começou a chorar em silêncio. Tanto por dentro como por fora. Não disse quem era. A Polícia chegou. Não havia nada a fazer. Ele tinha certeza de que o filho mais velho cuidaria de tudo. Voltamos para a feira. Recolheu sua banca e eu a minha camomila. Pusemos na carroça. Quando ele foi arrear a princesa, ela percebeu a tristeza de seu amigo. Balançou várias vezes a cabeça deslizando o focinho no rosto do meu avô, querendo consolá-lo. É incrível a interação de um animal bem tratado. Voltamos para casa. A princesa que normalmente andava célere, de cabeça e rabo erguidos, jogando sua longa crina de um lado para outro, caminhava de cabeça baixa, passos lentos e rabo entre as pernas, numa marcha fúnebre. Percebi que as rédeas estavam soltas nas mãos do meu avô. A égua nos conduzia. Ela sabia o caminho da volta. Eu quis falar tanta coisa, mas não sabia o quê. Pretendia dizer, por exemplo, que “era vontade de Deus”. Coisa que ouvira no catecismo. Não disse. Absurdo ter acontecido por vontade do Criador. Seria muita sacanagem. Minha avó e os outros filhos ainda dormiam. Sentei-me de frente a ele. Sem pronunciar uma palavra, dissemos muita coisa com o olhar. Peguei minha cesta de camomila e fui para casa por uma rua descalça e esburacada chutando tudo que aparecia pela frente. A camomila eu venderia na segunda para o pessoal do Fórum onde já trabalhava em pequenos afazeres. Recebi, nessa manhã de domingo, uma dose reforçada da vacina contra qualquer tipo de eventual arrogância ou soberba pela lição precoce que a vida me deu, de que somos apenas pó, que um dia chegamos e que de repente, de improviso, vamos embora.

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