João Baptista Galhardo
A dentadura é uma prótese que substitui os dentes, podendo ser retirada e recolocada na boca. Em pesquisa sobre Odontologia colhe-se a informação de que, em 1927, o governo japonês mandou remover parte de um cemitério para construção de uma via pública. Numa urna de cerâmica foi encontrada, talvez, a primeira dentadura confeccionada no mundo, pertencente a um famoso samurai. A peça teria 344 anos. Confeccionada em madeira "tsuguê", árvore nativa do Japão, de grande resistência e ainda hoje utilizada na fabricação de pente. Os dentes foram feitos de pedra sabão de cor marrom.
A dentadura é importante não só por questão de estética anatômica, mas também fonética. Há uns sessenta anos atrás havia ainda alguma resistência em usá-la, como hoje quanto à prótese capilar.
Não sei por qual razão meu pai perdeu precocemente seus dentes superiores. Minha mãe tinha belos dentes.
Um jovem, seu conhecido, que se formou em Odontologia, lhe ofereceu para fazer uma chapa. Era assim chamada a dentadura. Ele não tinha dinheiro. Mas a suavidade das prestações animou meu pai a colocar a dita cuja.
Ele tinha os lábios grossos. Nem se notava a ausência dos dentes superiores. No dia esperado ele aparece com sua chapa mostrando os dentes de cima. À primeira vista minha mãe comentou que ele era muito mais bonito sem os dentes superiores, mas acostumou-se.
Dona Olinda, uma vizinha, solteira, cinqüentona bem passada, invejosa correu num profissional e colocou uma chapa com umas lasquinhas de ouro para disfarçar e dar a aparência de dentes naturais. Ela passou a rir até em velório e em outros acontecimentos onde não cabia sorriso.
Parece que ela secou meu pai. Um dia ele deixou cair a dentadura que se partiu ao meio. Dinheiro para fazer outra, nem pensar. Teve uma idéia improvisada. Acendeu uma vela e aproximou da chama as duas partes com a esperança de reuni-las restaurando o aparelho. É claro que não deu resultado e ainda derreteu um pouco a extremidade dos dois pedaços. Voltou à banguelice.
No carnaval era costume no campo do Brasão a realização de um jogo de futebol entre homens e "mulheres", ou seja, marmanjos escrachados vestidos de baianas, ciganas, nega fulô, grávida, etc.
Faltando um para a equipe das "mulheres", convidaram meu pai para compor o time. Ele relutou, mas minha mãe, sempre bem humorada, o entusiasmou e lá foi ele de cigana, com um sutiã cheio de papel, um brinco de argola e pequenas almofadas no calção, simulando adiposidade. E para dar um ar mais engraçado ele colocou na boca uma metade da dentadura. Horrível, mas alegre. Eu, envergonhado e assustado. Primeiro por ver meu pai fantasiado de cigana e segundo pelo temor de ele engolir aquele pedaço da postiça.
O campo lotado: mulheres, filhos, filhas, namorados e curiosos assistindo. E dona Olinda ali por perto gritando para meu pai:
– Vai engolir os dentes, Paco.
Naquela noite até sonhei com o indesejável acidente. No outro dia houve uma gritaria perto de casa. Gente que entrava e saía da casa de Olinda. Não deu outra. Foi castigo. Olinda comendo um viscoso pedaço de jaca engoliu a dentadura que desceu esôfago abaixo graças a um tremendo soco dado pelo Bigode nas suas costas.
Chamaram vizinhos para ajudar e até o farmacêutico, que aconselhou um bom purgante para a mulher, que ficou oca de tanto ir ao banheiro sem o resultado desejado.
Chamaram o médico, Doutor Renato, que aconselhou que ela ficasse sem calça, de bruços na cama, com as pernas encolhidas sob o abdômen, tipo frango assado, com o vestido levantado, para que à vista de todos lhe fizessem um bom clister de uns três litros de chá morno de camomila. Cena ridícula sob olhares maldosos. E nada. Até que enfim apontou um sorriso no final do túnel. E todos gritaram como torcida de futebol:
– Olha láááá, olha lá, olha lá…
O Doutor Renato, pouco ético, não agüentou e caiu na gargalhada que precisou segurar sua barriga gorda esparramada para fora da cinta. "Nunca vi ninguém rir por esse lugar". Quando caiu na real, fez semblante de sério e com fórceps retirou a dentadura, exibindo o troféu aos presentes que ignorando o vexame da coitada aplaudiam o médico. A notícia correu solta e com detalhes exagerados.
Dona Olinda, professora de catecismo, puxadora de ladainhas na procissão do Carmo, quase não saiu mais de casa, sabedora do extravagante apelido que lhe deram.
Quando ela passava faziam questão de dizer em voz alta:
– Lá vai Dona Bundaquerrí.
Meu pai faleceu tempos depois… sem dentes. Mas deixou na minha lembrança o seu belo sorriso que me dá saudade.