O que está por trás da proibição dos “chips da beleza”

Claudia de Lucca Mano (*)

Recentemente, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) proibiu a produção e venda de implantes hormonais manipulados, conhecidos como “chips da beleza”. A proibição foi definida em razão da potencialidade de riscos à saúde, incluindo efeitos cardiovasculares e hormonais. A decisão baseia-se em dados de efeitos adversos identificados e levados a conhecimento da agência por entidades médicas, resultando em um alerta sobre a falta de comprovação científica para uso seguro desses implantes em tratamentos estéticos e hormonais. A proibição, temporária, teoricamente visa à proteção da população até que existam estudos que comprovem a segurança e eficácia dessas substâncias. Mas, o que realmente motivou a tomada dessa decisão por parte do órgão regulador? A questão suscita aprofundar uma reflexão.

A Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), representando diversas sociedades médicas, coletou dados de eventos adversos em sistema privado, sendo certo que a ANVISA já dispõe do Vigimed, o sistema de notificação obrigatória de eventos adversos para monitoramento de produtos pós-mercado.

Segundo a ANVISA, a carta enviada pelos médicos dá conta de que os implantes hormonais, produzidos exclusivamente por farmácias de manipulação, estariam associados à efeitos adversos, como problemas cardiovasculares e distúrbios endócrinos. Ocorre que os dados, coletados em plataforma não oficial, não parecem possuir lastro e transparência necessários para uma análise mais rigorosa. Por exemplo, existiriam referências que falem sobre defeitos nos implantes manipulados? É certo que todo medicamento possui riscos e benefícios, colocados na balança para aferir se convém ser utilizado para tratamento de determinada condição de saúde. E todos têm potencial de causar efeitos colaterais.

Até o momento, vale ressaltar, não se sabe se os efeitos adversos são do tipo esperados, com o uso de hormônios pela via oral ou através de implantes de liberação controlada, ou se resultam de eventual desvio de qualidade na produção/manipulação ou ainda na liberação controlada dos implantes manipulados.

As medidas sanitárias cautelares baixadas pela ANVISA podem ocorrer quando existirem evidências de adulteração, fraude, falsificação ou suspeita de desvio de qualidade em produtos, que possam afetar a saúde da população. Por força de lei, podem durar no máximo 90 dias, tempo suficiente para investigação sanitária, que deve ser feita através de coleta de amostras e envio de produtos para análise fiscal em laboratórios públicos.

Na prática, contudo, não é o que ocorre. A agência lança mão de ditas medidas toda vez que tem dúvidas sobre determinados produtos. É uma lógica que reflete uma certa preguiça regulatória: “na dúvida, proíbe”. Isso ocorre com bastante frequência no mercado de farmácias de manipulação, a exemplo das proibições de SARMS, anorexígenos, peelings de fenol e canabidiol. Não é sem razão que as farmácias de manipulação vivem às portas do judiciário, pleiteando a revogação de medidas sanitárias restritivas, na chamada judicialização. Essa antipatia com as farmácias magistrais pode sugerir um viés da Anvisa em prol da indústria farmacêutica em detrimento ao medicamento manipulado.

Ao analisar a estrutura e os procedimentos de qualidade das farmácias que trabalham com produtos estéreis (injetáveis, colírios, implantáveis), as justificativas da ANVISA perdem força. Esses estabelecimentos seguem rigorosos padrões de segurança, possuem equipamentos de ponta, controles, checagem de qualidade e esterilidade de ambientes e produtos, o que os qualifica para atuarem com medicamentos estéreis.

Obviamente, as farmácias de manipulação são fiscalizadas com rigor e com frequência pelas autoridades sanitárias dos estados e municípios. Aliás, a própria ANVISA mandou fiscais de Brasília (DF) para verificarem as condições de todas que atuam com estéreis em 2023, num amplo programa de inspeções. Na ocasião, nos estabelecimentos onde foram verificados problemas houve regularização, correção ou melhorias de pontos específicos nas boas práticas de manipulação de estéreis. As linhas ou processos porventura interditados temporariamente já foram liberados. Vida que segue.

Era de se esperar, portanto, que se a agência tivesse observado um número importante de notificações de eventos adversos no sistema oficial, se já suspeitasse de um incremento no risco no uso de hormônios pela via implantável, se detectasse graves problemas intrínsecos no processo produtivo dos chips manipulados, falhas no mecanismo de liberação lenta, as medidas cautelares já teriam sido tomadas em 2023. Faria mais sentido.

O descontentamento da comunidade médica parece ter origem na proliferação de tratamentos voltados para a saúde estética. Frequentemente, os implantes subcutâneos são promovidos por atrizes e modelos, retratados na mídia como uma forma de “aperfeiçoamento pessoal”, enfatizando o desejo de aprimorar a aparência física, além de benefícios médicos.

Mas, a origem dessa tecnologia está relacionada ao controle da natalidade, havendo inclusive produtos industrializados incluídos em programas do SUS. Os implantes se prestam à contracepção, reposição hormonal, podendo ser usados para suspender a menstruação, melhorar a libido, aumentar a massa muscular e reduzir a celulite.

Aos médicos, parece incomodar a expansão do mercado de beleza, impulsionada por outros profissionais de saúde no Brasil, como biomédicos, fisioterapeutas, farmacêuticos, enfermeiros, esteticistas, odontólogos, etc.

É certo, porém, que os implantes hormonais são prescritos e implantados exclusivamente por médicos com total consentimento dos pacientes. Por regra da ANVISA, hormônios são medicamentos de controle especial, podendo ser receitados por médicos, veterinários e odontólogos em seus respectivos campos de atuação. Aliás, a atuação de dentistas na chamada modulação hormonal já foi polemizada cerca de cinco anos atrás.

Ponderações feitas, a repentina decisão da Anvisa de proibir, baseada em dados privados, evidencia que a agência acaba por se render a uma fórmula regulatória confortável e proibicionista, injustiçando todo um setor, com base em dados frágeis e cujas motivações não sejam necessariamente as que melhor servem os interesses dos pacientes brasileiros.

O caso reforça a necessidade de uma abordagem regulatória mais transparente e imparcial, que valorize o potencial técnico do setor de manipulação. Uma ação mais equilibrada poderia incentivar uma regulamentação que reconheça o valor das farmácias de manipulação para a saúde pública, promovendo alternativas seguras e acessíveis à população.

(*) É advogada e consultora empresarial atuando desde 1999 na área de vigilância sanitária e assuntos regulatórios, fundadora da banca DLM e responsável pelo jurídico da associação Farmacann

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