O que é bom prá tosse

Texto: Rosa Godoy

– Perdi minha companheira de 30 anos! Perdi a mulher da minha vida! Ai, meu Deus do céu, o que vou fazer agora? Nunca mais vou ser feliz…

Assim ele respondia aos pêsames. E chorava, chorava, chorava. Inconsolado. Mortificado. Nada nem ninguém conseguiam demovê-lo do lado do caixão da falecida. Na hora do enterro, só faltou se jogar na cova. Ainda hoje, duas décadas depois, reclama da vida toda vez que se lembra da viuvez. Sempre começa assim: “No tempo da finada é que era bom”.

Não fosse a história do seu casamento e tudo o que todo mundo conhecia do seu passado com a mulher, poderia dizer que poucas vezes na vida havia visto cena tão desoladora como aquele velório. Sim, porque contrastando com o viúvo mais triste do mundo, ali se encontrava o marido mais chato do mundo.

Eram famosas as suas chatices. Se algum dia, lá pelas tantas, inventasse que a xícara estava com cheiro de ovo (nunca entendi como uma xícara pode cheirar a ovo, porém…) fazia a mulher tirar toda a louça do armário (xícaras, pratos, tigelas, travessas, cumbucas etc), lavar com água quente (da chaleira, torneira elétrica só para ricos) e sabão (detergente, nem pensar, caro demais), secar ao sol (pobre dela nos dias de chuva) e, ainda por cima, esfregar álcool por dentro e por fora. Depois, deixar secar e guardar tudinho no mesmo lugar. Diga-se de passagem, que a casa toda era etiquetada, malgrado a exclusividade do vernáculo: sapato marrão, caicha de engrachate, roupas das criansas, feijãos, arros e outras pérolas.

Tinha fixação pela lavagem das roupas. Tarefa cotidiana, nem pensar em deixar de um dia para o outro. Ela tinha que fazer igualzinho a mãe dele fazia (assim como o feijão, o bolinho de batata, a abobrinha refogada – aquilo sim é que era mulher, igual não existe): separar por cores, molhar, passar sabão, esfregar, enxaguar, passar sabão outra vez, esfregar, quarar, enxaguar, torcer (não muito para não ficar marca) e pendurar no varal (espaçadinho, com dois pregadores, um de cada lado). Se pensa que acabava aí, ledo engano, depois é que complicava. Tinha que ficar de olho para roupa não secar nem demais nem de menos. E se fosse tempo do Noroeste, tirar rapidinho do varal para não ficar com cheiro de vento. Pode?

Quando mudou da casa para o apartamento, ela deu graças a Deus, pensando que a vida com as roupas ia ficar mais fácil. Afinal, não era mais o caso de quarar nem secar ao sol, muito menos de ficar ao sabor do vento. Qual o quê! Se melhorou de um lado, piorou do outro, pois passou os 20 anos seguintes subindo e descendo de um banquinho para pegar da bacia e dependurar peça por peça de roupa lá em cima, quase no teto. Tudo isso porque ele instalou o varal (feito por ele mesmo para economizar) sem as cordas de movimentação (coisa supérflua, luxo à toa, sem necessidade). Pelo menos se ela não fosse tão baixinha!

Era assim o agora viúvo inconsolado que havia perdido a companheira da sua vida. Claro, pudera! O que ele estava era adivinhando o futuro. Quem iria agüentar as suas manias dali para frente?

O engraçado é que posso jurar que a falecida, no caixão, mudava de expressão conforme a pessoa que se aproximava. Se era amigo ou parente, parecia estar lamentando estar ali, mortinha da silva, sem saída (sempre dizia que no dia que morresse, seria contra a sua vontade). No entanto, quando o marido se aproximava e fazia aquele berreiro, o canto da boca num leve sorriso, quase irônico, parecia dizer: – Agora é que ele vai ver o que é bom para tosse! Aliás, era o que costumava falar para as irmãs e comadres quando o copo da paciência estava para derramar.

Não que não tivesse lá suas forras. Depois que ele saía para trabalhar, cedinho para pegar o primeiro bonde (Deus ajuda quem cedo madruga), a marmita quentinha debaixo do braço (comida é boa feita na hora, de ontem é sobra) e todas as recomendações do dia devidamente repassadas, ela voltava rapidinho para cama e dormia até a hora do almoço com as crianças (que, aliás, nunca denunciaram o feito ao pai). Depois, corria feito maluca para dar conta do recado, pois se ele chegasse à noite (pontualmente às seis e quinze) e ainda houvesse algo para fazer, o pau comia, era falatório para semana toda. Mas, pelo menos, tinha dormido o quanto queria, isso sim é que era vida!

Outra coisa que gostava era de pão dormido com café (ralo, quentinho e doce feito bala). Como ele não gostava de pão, nunca tinha em casa. Ela comprava às escondidas, colocava no fundo do guarda-comida e por dois ou três dias se refestelava com aquele manjar dos deuses. Pena que nem sempre dava para roubar os trocados da carteira dele para satisfazer-lhe o gosto.

O fato de o trabalho doméstico ser exclusividade do mundo feminino é notório e cultural, porém, além dessa sina em geral as mulheres carregam outra, a de ser pau mandado até nisso. Tal prática era comum nas gerações passadas, porém, infelizmente ainda persiste na atualidade. Junto com o pacote – cuidado da casa, dos filhos, do marido – vem o mando, a subordinação e, com ela, o estereótipo da rainha do lar. Ela reina, soberana e até a indumentária faz juz ao cargo: o manto é o avental, o cetro é a vassoura e a coroa, uma das panelas (de alumínio, inox, pedra, barro ou vidro, tanto faz). Haja paciência!

O pior de tudo é que muitas mulheres ainda fazem questão de se colocar na posição de dona de casa-modelo, dificultando mais a superação desta ordem das coisas. Outro dia, numa conversa entre amigas, todas, sem exceção, reclamando do peso e da chatice do trabalho doméstico, uma falou: – Ah, mas eu prefiro eu mesma lavar e passar toda a roupa, inclusive os ternos dele, fica melhor que na lavanderia. Apesar que não me sobra tempo para mais nada, não consigo um minuto para mim blá blá, blá… a reclamação continuou como tinha começado.

Valha-me Deus! Será que esse marido também algum dia vai ver o que é bom prá tosse? Ou será ela?

Compartilhe :

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

A poesia é um dom

O leão e a gazela

Ainda Estamos Aqui

Um Brasil Exótico

A verdadeira motivação por trás do banimento da carne do Brasil pelo Carrefour

CATEGORIAS