Sérgio de Oliveira Médici (*)
“O erro é comum entre os homens. Mas quando aquele, sensato, comete uma falta, torna-se feliz ao reparar o mal que praticou e não permanece renitente”. (Tirésias, personagem de Antígone, de Sófocles).
Imagine o leitor a seguinte hipótese: o Tribunal de Contas da União, ao declarar irregulares as contas de 1999 do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, considere também responsável por elas o atual vice-presidente José de Alencar. A reação só poderia ser esta: trata-se de situação absolutamente impossível, pois José Alencar, o atual vice-presidente, tomou posse juntamente com o presidente Lula, em 2003. Logo, não pode ser responsabilizado por eventuais irregularidades de um governo de que não participou.
Pois bem. O caso acima suposto não ocorreu com o vice-presidente José de Alencar, mas aconteceu comigo. Como já foi amplamente noticiado, o Tribunal de Contas do Estado emitiu parecer contrário às contas da Prefeitura de Araraquara relativas ao ano de 1999. E me incluiu como responsável, por ser o vice-prefeito, “no exercício do mandato de prefeito”, na administração Waldemar De Santi.
A decisão é do ano passado e a primeira reação que tive foi a de sorrir. Afinal, qualquer pessoa sabe que ninguém pode ser responsável pelo que não fez e nem poderia fazer. Se fui eleito com o prefeito Edinho em 2000 e assumi o cargo de vice-prefeito em 2001, não teria como participar de eventuais irregularidades ocorridas em 1999. Seria o mesmo que estabelecer alguma punição para uma pessoa que ainda nem nasceu…
A esta altura o leitor deve estar indagando: como pode um Tribunal cometer o erro tão grosseiro como este? Errar é humano. Todos nós erramos. E a explicação estava na defesa que fiz da administração anterior, na condição de advogado. No final do texto, abaixo do meu nome, coloquei a correta identificação dos cargos que então ocupava, em 2001: vice-prefeito e secretário dos negócios jurídicos.
O conselheiro relator deve ter confundido o advogado (e atual vice-prefeito) com o companheiro de governo do ex-prefeito. Apontei o equívoco ao Tribunal, em recurso adequado, mas a decisão não foi alterada. Meu nome continuou no processo como vice-prefeito de De Santi.
Solicitei, então, que o advogado da Prefeitura apresentasse um novo recurso – chamado pomposamente de embargos de declaração – na certeza de que o erro fosse corrigido. O conselheiro relator, que constantemente aponta falhas no trabalho dos outros, não gostaria de permanecer naquela situação de tão evidente equívoco, comentei com o Dr. Alexandre Vidotti. Reconheceria o erro e, com este pequeno ato de humildade, engrandeceria o bom nome do Tribunal
Qual não foi o meu espanto quando, mais uma vez, a trapalhada foi mantida, em decisão que apreciava o mérito e reafirmava minha condição de vice-prefeito do século passado. No final, a incrível decisão considerou ainda que meu recurso era intempestivo. Duplo engano, neste ponto: 1) se o recurso está fora do prazo, o julgador não pode apreciar o mérito da questão; 2) o pedido para correção de simples erro material pode ser apresentado a qualquer momento (mesmo após o trânsito em julgado de uma decisão).
Lembrei-me, então, do meu trabalho de mestrado, na Faculdade de Direito da USP, sobre revisão criminal, cujo foco principal está exatamente no erro judiciário. Registrei naquele texto, posteriormente transformado em livro pela Editora Revista dos Tribunais, várias observações sobre o erro humano, a partir da frase célebre atribuída a Sêneca: Errare humanum est, sed in errore preservare dementis.
Alguns autores, como Álvaro Villela, consideram o erro “um fantasma negro que acompanha o juiz como se fosse a sua sombra”. Outros, mais extremados ainda, dizem que o erro judiciário é mais desastroso que os terremotos, as tormentas e as epidemias e mais lacrimantes que as guerras (Orano) e constitui uma calamidade pública quando não prevenido nem remediado (Ortolan).
São reações exageradas, mas que em alguns casos podem efetivamente provocar situações desastrosas. Felizmente, nada disso acontecerá comigo.
Primeiro, porque o chamado Tribunal de Contas do Estado não integra o Poder Judiciário (apesar do nome Tribunal) e sim o Poder Legislativo. No exame das contas das Prefeituras, o TCE emite um parecer, cujo julgamento compete às Câmaras Municipais.
E, como os nossos vereadores conhecem bem a recente história de Araraquara, certamente excluirão meu nome no momento da apreciação do mérito das contas da administração do já distante ano de 1999. O ilustre presidente Ronaldo Napeloso já sinalizou nesse sentido ao submeter meu requerimento ao plenário da Câmara, na sessão de terça-feira passada.
Segundo, porque ainda acredito que o próprio Tribunal de Contas acabará corrigindo a falha, num novo recurso. Afinal, é preciso ponderar que a ninguém interessa a permanência de tão lamentável equívoco. Muito menos a um órgão instituído para fiscalizar e apontar as falhas de administradores públicos de todo o Estado de São Paulo.
(*) Sérgio de Oliveira Médici é advogado, professor universitário e vice-prefeito de Araraquara.