João Baptista Galhardo (*)
Quase meia noite, quando voltava do Colégio passei por uma trilha de mato para encurtar o caminho de casa. Absorto e assobiando, próprio de quem está com medo, tropecei em algo que se moveu. Assustado e imóvel ouvi uma voz feminina. "Você não tem vergonha de ficar olhando?" Percebi, então, que um homem estava sobre uma mulher e pela rouquidão reconheci que a de baixo e que falou era a Barbina, uma mulher de pequena estatura, com olhos penetrantes, conhecida mendiga alcoolista do bairro. E o homem só poderia ser seu namorado o Rolinha, também descamisado, que vivia de pequenos biscates matando formigas com formicida assoprada por um fole nos olheiros dos insetos. O fole era o seu único patrimônio. Os dois faziam parte de uma turma formada por eles, por "Canela de Corvo", "Nairzona", "Pernambuco" e pelo líder "Peru". As mulheres sobreviviam de raros e pequenos afazeres em residências e de vez em quando, com exceção da Barbina, com a venda do corpo numa moita ou construção de casa transformada em motel.
A moita ou construção era o motel daquele tempo.
O Peru, o único que sabia ler e escrever, era um alcoólatra diferente. Sempre de paletó e andava com um bloco de anotação com pequeno lápis preso na sua espiral. Anotava tudo o que acontecia com a turma, da qual era uma espécie de conselheiro. Fazia várias vezes o trajeto da rua doze a quinze, na avenida Sete de Setembro visitando os bares desse percurso. Entravam, tomavam uma pinga e saíam. Comiam o que conseguiam. Vestiam o que ganhavam. Dormiam em qualquer lugar. O que chamava atenção era o romance do Rolinha com a Barbina. Sempre de braços dados. Ciumentos. Um amor respeitado e admirado. Peru anotava tudo em seu diário.
Embora não soubessem o nome dos governantes, nem entendessem de over price, over night, licitação, corrupção, estelionato, falcatruas, "laranjas", de preço de boi gordo, boi magro, morto, em pé ou deitado, tinham eles um código de ética: "não perturbar ninguém, não falar palavrão e de forma alguma ficar com o que é dos outros. Roubar seria a maior vergonha para o grupo.
Canela de Corvo, não!
Certa vez a Polícia prendeu Canela de Corvo sob a acusação de haver roubado uma nota graúda da carteira de um homem semiembriagado. Peru, Rolinha, Barbina, Nair e Pernambuco foram à Delegacia em defesa da colega. Juravam por Deus a sua inocência.
– Podem revistar, protestava a presa. O Delegado pediu para a investigadora Doralice revistá-la numa sala fechada. Logo depois a policial apareceu com um objeto na mão: "olha aqui, achei, estava na perseguida dela.
– Onde? Indagou o Delegado Dr. Ventosa. E de cochicho na orelha teve a explicação. O dinheiro estava dentro de uma caixa de fósforo que estava dentro da ladra. A turma se retirou indignada pelo comportamento indecoroso da Canela de Corvo. Ela foi sumariamente excluída do grupo.
Eles eram solidários entre si. Repartiam comida, coberta, tristeza e afeição.
Rolou entre eles a notícia de que Barbina estava muito doente.
Tuberculose, a doença. Abatidos consolavam Rolinha e tentavam proteger a sua namorada. Numa manhã, naquela mesma trilha, Barbina foi encontrada morta. Ao seu lado, de mãos dadas estava Rolinha e ao lado dele uma garrafa de pinga e uma porção de formicida que usou para por fim a vida. Se chamassem Abelardo e Heloisa ou Romeu e Julieta e não fossem mendigos seriam personagens de um belo romance.
Maria da Bunda Mole, eventual participante do grupo e a única que tinha residência, ofereceu sua pequena casa no João de Barro, do São Bom Jesus, para o velório. Os corpos foram velados um ao lado do outro, em caixões de pinho, por certo doados. Presentes estavam todos. Até a presença da Canela de Corvo foi excepcionalmente permitida.
Sabe-se que durante a guarda dos defuntos foram consumidas respeitosamente algumas garrafas de marafo. Afinal ninguém é de ferro.
Rolinha e Barbina foram enterrados, sem nome completo em sepulturas de indigentes. Como essas covas devem ser desocupadas depois de certo tempo tiveram os coveiros uma surpresa. O corpo de Barbina já havia se transformado em pó e o de Rolinha foi encontrado em bom estado de conservação. E isso se deve à circunstância de que o corpo (animal ou humano) de quem morreu envenenado não é consumido por larvas, vermes ou por insetos ortópteros. Nem urubu passa perto.
Por ignorância muitos casos como esse já foram considerados milagres.
A notícia correu e muitos rezaram invocando o seu nome pedindo ajuda espiritual. Por pouco o Carmo deixou de ter o seu santo milagreiro: o "São" Rolinha.
(*) E-mail: jbgalhardo@uol.com.br