Reginaldo Galli (*)
Pessoa fina, agradabilíssima, professora austera e competente, Dona Cidinha lecionava História. Rigorosa ao extremo, tirar nota 9, com ela, equivalia a uma indicação para o Prêmio Nobel do Saber.
Naquela manhã, chegou portando dois mapas. Desenrolados, pendurou-os nos ganchinhos de sempre. Após a chamada, deu boas-vindas a George, aluno recém-transferido, e anunciou: “hoje vou fazer breve introdução à matéria do bimestre. Estudaremos a Mesopotâmia e regiões vizinhas, numa viagem fascinante à civilização antiga, berço de notabilíssima cultura. Palco, entretanto, de horríveis guerras. A palavra grega Mesopotâmia significa Entre Rios. Meso é igual a meio, pótamos quer dizer rio. Já ouviram falar em hipopótamo? Seu significado é cavalo do rio. Nesta região (apontou o mapa) havia terras muito áridas, mas também uma faixa estreita excelente para a agricultura, por ser irrigada pelas águas dos rios Tigre e Eufrates. Era chamada O Fértil Crescente e vocês podem vê-la aqui, assinalada em forma de meia-lua. Foi onde, 3200 anos antes da nossa era, inventaram a escrita, este milagre da inteligência que nos põe em comunicação e que alavancou o progresso do mundo. Nela, três povos sobressaíram: sumérios, babilônios e assírios. Adianto-lhes, a título de curiosidade, que os jardins suspensos da Babilônia foram uma das sete maravilhas do mundo antigo. O número 7, aliás, parece impregnado de mistério e magia: sete são os dias da semana, as notas musicais, as cores do arco-íris, os pecados capitais etc etc. Criaram, inclusive, a contagem sexagesimal: uma hora tem sessenta minutos e um minuto tem sessenta segundos. Tudo isso usamos estouvadamente, desconhecendo o porquê de quase tudo. Neste outro mapa está desenhada a mesma região, como é nos dias atuais. O Iraque ao centro e seus limítrofes. A esplendorosa capital do Iraque, Bagdá, é depositária de mil e uma lendas e muito conhecimento. Esses tesouros estarão a nosso alcance nas próximas aulas. Astronomia, matemática, poesia, legislação, costumes, artes, ao lado de devastadoras guerras de conquista. Eis o trinômio do homem antigo: a sabedoria, nela incluída a contemplação e o temor aos deuses, o prazer, seus vícios e depravações, e, por fim, uma desmedida ambição, causa de cruéis batalhas e de sórdidos extermínios. Alguma pergunta ?”
Vários alunos erguem o braço.
–“Vou priorizar seu mais novo colega. Diga, George.”
–“Professora, eu anotei aqui cinco dúvidas: 1ª) Será que é por causa desse tal fértil crescente que meu pai manda a família inteira cortar o cabelo na mudança da Lua? 2ª) Se aquele pessoal era tão inteligente, de que jeito podiam confundir um cavalo com um hipopótamo? 3ª) A senhora não me conheceu antes, mas juro que descobri a escrita, a leitura e as continhas de mais quando completei 9 anos; eles precisaram de séculos? 4ª) Papai recebeu um telefonema da mulher de meu tio Wilson contando que, na madrugada de domingo, ele chegou pra lá de Bagdá. Onde fica isso ? 5ª) Esses velhos imorais contam muito papo, mas eu acho que eles não sabiam nada. Tome cuidado com o que a senhora vai contar, porque o número 7 é conta de mentiroso.”
Ouviu-se um estrondo, seguido de absoluto silêncio… A campainha gritou pelo recreio e soprou vida naquelas trinta e nove estátuas de pedra. Ufa !!!
Duas semanas após, George deixou a escola, novamente transferido. Seus pais herdaram ricas propriedades, num país bem ao norte, e para lá se mudaram. Consta que o jovem completou estudos e seguiu vitoriosa carreira política. Uma revista francesa fotografou George, no seu rancho, com os pés (e botas) sobre a mesa e, na parede, um mapa-mundi ladeado pelas figuras de Átila, o temível rei dos hunos, e Cipião Emiliano, o último demolidor de Cartago. Busteado em bronze, Júlio César, lendário imperador romano, adornava o canto principal da sala, ostentando no peito a famosa frase VIM, VI, VENCI .
(*) É professor e colaborador do JA