João Baptista Galhardo
Quando criança ganhei do meu pai um tuim. O menor dos psitacídeos. Conhecido como periquito-de-santo-antônio, de coloração verde e de cauda curta. Ainda não tinha plumagem. Improvisei um ninho com retalhos de pano e duas vezes ao dia o alimentava com água e fubá. Cresceu solto. Não foi embora. Ficava por perto. Ora na pitangueira ora na amoreira, dando, de vez em quando, vôos rasantes dentro de casa. Batendo numa parede, teve uma asa parcialmente fraturada. Fui até a serraria do Maneco Branco, pedi cola forte de madeira e consegui curar o passarinho. Me senti como o melhor cirurgião do mundo. Sempre tive, desde pequeno, respeito e carinho pelos animais, genericamente falando. Tive coelhos, papagaios, cabra e cachorros. Já adulto e casado comprei uma vaca, cor de mel, mocha que passou a ser chamada de Jurema. Nas tardes ela me fazia companhia enquanto tomava cerveja numa mesa improvisada sobre a grama do sítio. Contava-lhe histórias e casos reais, enquanto ela comia pão. Gostava de me ouvir. Quando parava ela me cutucava com a cabeça para continuar. Certa vez contei-lhe a fábula do lobo e do cordeiro:
– Um cordeirinho bebia água na corrente de um regato, quando foi advertido por um lobo.
– Como ousa sujar a água? Respondeu o cordeiro:
– Ela vem descendo e eu bebo aqui no declive, como posso turvá-la?
– Não importa, fiquei sabendo que você há uns seis meses andou falando mal de mim.
– Como é possível se eu tenho apenas noventa dias de idade?
– Mesmo assim eu vou matá-lo, respondeu o lobo.
Quando disse que realmente o cordeiro foi devorado pelo lobo, a Jurema parou de ruminar e me olhou seriamente como se estivesse dizendo: “não acredito que o lobo fez isso”. Disse-lhe que é assim também entre as pessoas. As maldosas, invejosas e moralmente desqualificadas quando querem agredir a honra ou a integridade física de um inocente, arrumam pretextos absurdos para manifestação do seu mau-caráter.
A Jurema, por muitos anos, amamentou meus filhos. Salvei-lhe a vida quando se enfiou no rio e afundou no brejo. Pegou reumatismo infeccioso. Ficou magra. Abatida. Chamei o veterinário. Demos-lhe vitaminas e tratamento adequado. Engordou. Deu leite por algum tempo e morreu de velha, tendo recebido funeral condigno. Foi cremada. Não suportaria ver aquela ama-de-leite ser dilacerada, mesmo morta, por abutres.
Numa noite, saindo do meu sítio com minha Veraneio, já velhinha, na companhia do meu cachorro Nero, boxer de 50 quilos e mais de meio metro de altura, fui surpreendido por tremenda tempestade. Estrada sem acostamento. Pára-brisa não funcionando. Falha no farol alto. Pista de mão única, mantive o carro à direita da estrada temendo abalroamento. Não enxergava quase nada. Nero atento a tudo. De repente ouvi a palavra “cuidado”. Instintivamente movimentei a direção um pouco para a esquerda e tendo a sensação de haver atropelado alguma coisa, percebi que estouraram os dois pneus do lado direito. Como não tinha como parar, segui em frente alcançando o perímetro urbano e ruas iluminadas a um ou dois quilômetros. Voltei ao local com outro veículo e percebi que aquela palavra ouvida me salvou, por dez ou quinze centímetros de capotar várias vezes ribanceira abaixo. Havia marcas no chão. E que os pneus estouraram na guia de concreto existente sobre a tubulação para passagem de água sob a estrada. Não havia possibilidade de alguém de fora ter me alertado a não ser o Nero. Telepaticamente? Não sei. Alguém por intermédio dele? Quem sabe?. Um anjo da guarda? Pode ser. Em casa ele me olhou com olhar de gente grande. Eu lhe perguntei:
– Foi você Nero? Ele me respondeu por telepatia: “blindagem divina… espiritual”. E acrescentou, com muita sabedoria: “quem habita a morada do Altíssimo, terá sempre a sua proteção”.
Tempos depois Nero ficou doente. O exame de sangue acusava a gravidade do seu estado. Um dia, na hora do almoço, ele entrou para dentro de casa, o que não fazia sem autorização, me atraindo para o quintal. Queria me dizer adeus. Sentei no chão, ele colocou a cabeça no meu colo e faleceu. Despediu-se com a consciência em paz. Dever cumprido. De escudeiro e fiel amigo. Morreu de cirrose, doença crônica do fígado provocada geralmente por fumo e álcool. Eu testemunho em qualquer instância. O Nero não tinha vício algum. Não fumava. Nem bebia.